Jeffrey Timothy Landrigan nasceu em 14 de março de 1964 e foi abandonado pela mãe numa creche quando tinha oito meses de idade. Com sorte, o infante foi logo adotado por uma típica família norte-americana, recebendo todo o cuidado e atenção de seus pais adotivos.
Entretanto, alguma coisa parecia não fora do lugar na cabeça do menino. Aos 2 anos, Landrigan já apresentava ataques de cólera e outros sintomas de descontrole emocional. Aos 10 anos, começou a fazer uso abusivo de álcool. No ano seguinte, foi preso após invadir uma casa e tentar arrombar o cofre. Daí em diante, sua carreira criminosa envolveu roubo de carros, uso abusivo de drogas e curtas temporadas em centros de detenção. Aos 20 anos, depois de discutir com um amigo de infância que queria que ele fosse padrinho de seu filho, Jeffrey o esfaqueou até à morte. Condenado a 20 anos de prisão, conseguiu escapar em 1989. Pouco depois, foi preso novamente, pelo assassinato de Chester Dyer.
Durante o julgamento, Landrigan recusou que sua defesa apresentasse evidências atenuantes e afirmou que não sentia remorso por suas ações. Ele foi condenado por homicídio qualificado e sentenciado à morte. Em 26 de outubro de 2010, uma injeção letal pôs fim à sua carreira criminosa.
A história de Jeffrey Landrigan poderia ter sido somente mais um caso intrigante de criminoso vindo de um contexto familiar estável, se não fosse uma coincidência notável. Enquanto estava preso no corredor da morte, um preso disse que ele era igualzinho a um outro condenado à pena de morte, que conhecera no Arkansas. Darrel Hill era o pai biológico de Jeffrey, guardando semelhanças com o filho que iam muito além da aparência física. Afinal, Hill também iniciara sua carreira criminosa muito cedo, também era viciado em drogas, também tinha matado duas pessoas e também havia escapado da prisão.
O mais impressionante é que o histórico familiar não parava por aí. O avô de Landrigan também fora um criminoso de carreira, tendo sido morto na frente do seu pai após um assalto numa farmácia em 1961.
Criminoso nato?
Landrigan e seus familiares se tornarem objeto de atenção da criminologia pela semelhança peculiar na trajetória de vida, que desafiava muitos conhecimentos estabelecidos na disciplina. Afinal, se o pai de Landrigan teve convivência com o avô criminoso, o que poderia muito bem ter afetado sua personalidade ao longo da vida, o que dizer de Jeffrey, criado numa família estável? É possível falar de alguma forma de criminosos natos? Existe algo como um gene criminoso?
A descrença de muitos leitores acostumados à “sociologização” de todos os problemas da humanidade não deve ser um impeditivo para analisar o problema cientificamente. Para além do experimento natural da história contada acima, existem evidências que sugerem a importância da base biológica para o entendimento do crime.
Os estudos sobre a influência genética no comportamento criminoso ganharam força ao longo das últimas décadas, especialmente por meio de pesquisas com gêmeos. A ideia de pesquisar gêmeos é interessante porque pode dizer algo sobre a prevalência da influência genética sobre o comportamento humano. Gêmeos compõe algo em torno de 2% da população mundial. Quase todos são fraternos, ou dizigóticos, apresentando 50% do material genético em comum. Uma pequena parcela deles nascem monozigóticos, ou idênticos, com quase 100% dos genes em comum. Por isso, a diferença entre os dois tipos pode dizer algo relevante para a ciência, em termos de influência dos genes no desenvolvimento humano.
O pioneiro nesse campo foi o psiquiatra alemão Johannes Lange, que publicou seu estudo “Verbrechen als Schicksal: Studien an kriminellen Zwillingen” (Crime como Destino: Estudos em Gêmeos Criminosos), em 1929. Lange analisou 30 pares de gêmeos, sendo 13 monozigóticos e 17 dizigóticos, buscando entender a relação entre genética e criminalidade. A metodologia envolveu a comparação entre os irmãos em relação ao histórico de delitos, observando a frequência com que ambos exibiam comportamentos criminosos. O estudo revelou que a taxa de concordância entre gêmeos idênticos foi de 77%, enquanto para gêmeos fraternos foi de apenas 12%.
Esse achado foi pioneiro ao sugerir que fatores genéticos poderiam ter um papel determinante na predisposição ao crime, estabelecendo a base para investigações futuras. Entretanto, Langes enfrentou várias críticas no meio científico, devido a limitações metodológicas. A amostra reduzida e a falta de diferenciação adequada entre os gêmeos foram apontadas como vieses que poderiam comprometer as conclusões.
Além disso, o estudo carecia de controles quanto à variáveis ambientais, como desestruturação familiar, maus tratos, pobreza, má nutrição, entre outros, que poderiam ter influenciado na prevalência de determinados comportamentos.
Talvez pela resistência contra ideias de determinismo biológico fortuitamente associadas ao nazismo, demorariam quatro décadas até surgir uma nova pesquisa sobre o tema. Em 1977, o criminologista dinarmaquês Karl O. Christiansen publicou um estudo realizado com 3.586 pares de gêmeos nascidos no leste da Dinamarca entre 1881 e 1910, que sobreviveram pelo menos até os 15 anos de idade. Os resultados indicaram uma taxa de concordância para comportamentos criminosos de 35% entre gêmeos idênticos do sexo masculino e 13% entre gêmeos fraternos. Para as mulheres, as taxas foram de 21% para monozigóticas e 8% para dizigóticas. Esses achados sugerem uma influência genética na predisposição ao comportamento criminoso, embora Christiansen também tenha apontado para a importância de fatores ambientais.
Ainda que os resultados apontem uma relevância grande da genética, principalmente para o caso de gêmeos idênticos, o problema da assunção de ambientes iguais permanecia. Afinal, gêmeos idênticos podem ser tratados de modo mais equitativo pelos pais, professores e colegas comparados com gêmeos fraternos, o que poderia influenciar a semelhança de comportamento entre os dois. Por isso, pesquisadores decidiram conduzir estudos com gêmeos criados separadamente.
Salvo engano, a primeira pesquisa realizada nessa linha foi realizada por Raymond R. Crowe em Iowa (EUA), analisando 52 adotados nascidos de 41 mulheres criminosas encarceradas. O grupo de controle consistiu em 46 adotados sem histórico criminal na família biológica, pareados por idade, sexo e etnia.
Os resultados mostraram que 13% dos adotados de mães criminosas foram diagnosticados com personalidade antissocial, enquanto no grupo de controle essa taxa foi zero. Além disso, 18% dos adotados do grupo de risco foram presos ou condenados por crimes na vida adulta, em comparação com apenas 2% do grupo de controle.
Com uma amostra bem mais expressiva, Sarnoff Mednick e associados publicaram um estudo em 1984 na Science, causando grande impacto no campo da genética comportamental. A pesquisa envolveu uma coorte de 14.427 adoções realizadas na Dinamarca entre 1927 e 1947. O objetivo foi explorar a relação entre as condenações criminais dos pais biológicos e adotivos e o comportamento dos filhos adotivos, utilizando dados de registros judiciais e sociais.
O estudo adotou uma metodologia robusta, comparando subgrupos de filhos cujos pais biológicos e adotivos tinham diferentes combinações de antecedentes criminais. A análise revelou que filhos de pais biológicos com condenações criminais apresentavam taxas de criminalidade mais altas (20% quando apenas os pais biológicos eram condenados), em comparação com os filhos de pais biológicos e adotivos sem antecedentes (13,5%). Quando tanto os pais biológicos quanto os adotivos tinham registros criminais, essa taxa aumentava para 24,5%, sugerindo uma interação entre fatores genéticos e ambientais.
Em 2002, Rhee e Waldman publicaram uma meta-análise abrangente sobre a influência genética e ambiental no comportamento antissocial, reunindo 51 estudos de gêmeos e adoção. Os resultados mostraram que 41% da variância no comportamento antissocial era explicada por fatores genéticos, sendo 32% devido a influências genéticas aditivas (impacto cumulativo dos genes individuais sobre um traço ou comportamento) e 9% a influências genéticas não aditivas (interações complexas entre os genes, com o efeito de um gene podendo depender da presença ou ausência de outro).
Quase uma década depois, em 2013, Elizabeth Talbott e associados conduziram outra meta-análise, avaliando 42 estudos sobre herdabilidade do comportamento antissocial em gêmeos e irmãos não gêmeos, com uma amostra total de 94.517 pares de irmãos, abrangendo idades entre 1,5 e 18 anos. A análise de 89 estimativas de herdabilidade identificou uma distribuição bimodal, com medianas de 51% e 72%, sendo esta última associada a múltiplos informantes. A herdabilidade foi maior em estudos com 60% ou mais de gêmeos brancos, variando com localização geográfica e sendo superior em estudos longitudinais .
Retorno do determinismo biológico?
A quantidade de pesquisas disponíveis sobre o tema levanta um ponto importante no debate sobre a influência de fatores genéticos na predição de comportamento criminoso, mas isso não necessariamente se explica por algum tipo de determinismo biológico. Na verdade, cada vez mais cientistas se convencem de uma interação complexa entre fatores genéticos, anatômicos, familiares e sociais contribuindo para o comportamento delinquente.
Em “Anatomia da Violência”, o neuropsicólogo Adrian Raine fornece um modelo interessante que ajuda a entender melhor essa questão. Em resumo, cientistas têm identificados genes como MAOA, BDNF, 5-HTT, DRD2, COMT, entre outros, que podem se ligar ao mau funcionamento de partes do cérebro, aas quais respondem por funções como empatia, controle das emoções, estimulação cerebral etc.
O MAOA, por exemplo, codifica a enzima monoamina oxidase A, responsável pela degradação de neurotransmissores como serotonina, dopamina e norepinefrina, que influenciam o humor e o comportamento. Uma variante de baixa atividade desse gene, conhecida como MAOA-L, tem sido associada a comportamentos agressivos e antissociais.
Os homens com tal composição genética tem uma redução de 8% no volume da amigdala, do cingulado anterior e do córtex orbitofronal, áreas cerebrais envolvidas no controle de impulsos e regulação emocional. Além disso, pesquisas sugerem que a presença da variante MAOA-L pode aumentar a predisposição à agressividade, especialmente em indivíduos que sofreram maus-tratos na infância, evidenciando uma interação entre fatores genéticos e ambientais.
Já o BDNF é uma proteína que promove o crescimento e o tamanho do hipocampo, região que ajuda a regular a agressão. Também promove funções cognitivas como aprendizado e memória, bem como o condicionamento do medo e da ansiedade. Criminosos muitas vezes apresentam embotamento emocional, déficit de condicionamento do medo e redução da substância cinzenta, o que pode ser explicado em parte pelas pesquisas que associam baixo BDNF ao aumento da agressão impulsiva em seres humanos.
É possível que a exposição dessa realidade tenha um gosto amargo para indivíduos que tem o cacoete de sempre nas implicações sociais de determinadas explicações da realidade. Talvez um pai que pense em adotar uma criança possa sentir certa hesitação diante da exposição do peso de fatores genéticos para a predição do comportamento delinquente. Ou um policial pense que exames genéticos possam ser utilizados para inocentar ou atenuar a pena de um criminoso no tribunal, por exemplo.
A verdade é que nenhum componente, salvo nos casos clínicos de alienação mental, esgota o fator da escolha individual na decisão de um delinquente. O livre-arbítrio não pode ser completamente provado ou refutado pela ciência porque envolve questões que vão além do método empírico.
A ciência pode mostrar que nossas decisões são fortemente influenciadas por fatores inconscientes, mas isso não prova que somos completamente determinados. Essa é uma questão eminentemente filosófica, que ultrapassa o domínio do campo da ciência, naquilo que pode ser sujeito a uma prova científica, isto é, uma evidência obtida através do método científico, baseada em observação sistemática, experimentação, análise rigorosa e replicação de resultados.
Por outro lado, não se pode ignorar que a possibilidade de conhecer fatores genéticos que podem influenciar o comportamento de crianças pode ter implicâncias futuras sobre tratamento farmacológico, educação e apoio psicopedagógico que não deveriam ser evitadas a priori com base em crenças predisponentes.
Por exemplo, pesquisas tem demonstrado que antipsicóticos típicos, como o haloperidol, podem reduzir os níveis de BDNF no cérebro, enquanto antipsicóticos atípicos, como a clozapina, podem aumentar sua expressão. Além disso, estabilizadores de humor, como o lítio e o valproato, têm sido utilizados no tratamento de transtornos de humor e podem influenciar a agressividade. Avanços científicos em nanomedicina, farmacogenômica, terapia gênica e inteligência artificial aplicada à neurociência podem apresentar resultados promissores também nesse campo de intervenção.
Ninguém mais é capaz de negar que determinadas intervenções podem demover um suicida em potencial de concretizar o ato de acabar com sua própria vida, por mais que saibamos que a decisão, em última instância, é só dele. Então por que deveríamos nos fechar a compreender e talvez atuar sobre as sementes da maldade que podem estar alojadas no coração humano?
Talvez Landrigan e sua família tenham sido canalhas inveterados que estivessem destinados desde sempre ao corredor da morte, mas não sou capaz de compreender por que negaríamos a chance de intervir sobre qualquer um deles se determinados tratamentos pudessem amenizar o peso da biologia em suas escolhas, principalmente nos primeiros anos de suas vida.
Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político, presidente do Instituto Arrecife, e autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.
noticia por : Gazeta do Povo