As primeiras negociações diretas entre americanos e russos para discutir o fim da Guerra da Ucrânia e preparar a cúpula entre Donald Trump e Vladimir Putin começaram nesta terça (18) na Arábia Saudita sem a presença de representantes de Kiev, enquanto o país invadido há quase três anos sofria um dos maiores ataques aéreos do conflito.
As forças de Putin lançaram 176 drones contra os ucranianos, 103 dos quais a defesa aérea disse ter destruído. Houve registro de feridos e danos em diversas regiões do país, e forças russas anunciaram ter tomado mais uma localidade na região de Donetsk (leste). Antes, a maior ação com drones russos havia envolvido 188 aparelhos.
A demonstração de força casa com o estilo negociador propalado por Trump, que admira posições duras. Mas o Kremlin também deu algumas sinalizações acerca do que pretende fazer durante as conversas, criticadas em Kiev e na Europa pela ausência de terceiras partes à mesa.
O porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, reafirmou que a Rússia não se opõe à entrada da Ucrânia na UE (União Europeia), em oposição ao ingresso na Otan, a aliança militar liderada pelos EUA. “Nós estamos falando de processos de integração e integração econômica. Aqui, claro, ninguém pode ditar nada para outro país, e nós não vamos fazer isso”, disse.
“Há uma posição completamente diferente, é claro, em questões relacionadas à segurança ou à defesa ou alianças militares”, disse. A fala ignora o artigo 42.7 do Tratado da União Europeia, que, assim como o famoso item 5 da carta da Otan, determina assistência militar mútua em caso de ataque externo.
O próprio Putin já dissera algumas vezes, a começar em 2022, que não se opunha à negociação entre Kiev e Bruxelas. É uma mudança ante o que fez em 2013, quando condenou como “uma ameaça” a Moscou a negociação ao fim frustrada de um acordo entre a Ucrânia e bloco.
O fracasso levou aos protestos que derrubaram o governo pró-Rússia em Kiev, o que Putin respondeu com a anexação da Crimeia, o apoio a separatistas no leste e, em 2022, com a invasão.
As conversas na capital saudita, Riad, são as primeiras oficiais desde o fim de março de 2022, quando ocorreu a última rodada presencial entre negociadores russos e ucranianos. Após encontros em Belarus, aliada da Rússia, os times quase chegaram a um acordo em uma reunião em Istambul.
Os termos lá não eram muito diferentes dos que vêm sendo ventilados em contatos indiretos desde então: neutralidade e segurança ucranianas, concessões territoriais temporárias à Rússia, com rediscussão num futuro distante, entre outros.
O fracasso em chegar a um cessar-fogo se deveu, na visão russa, à interferência de líderes ocidentais como o então premiê britânico, Boris Johnson, favoráveis à continuidade do conflito. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, nega e diz que a intransigência foi russa.
Agora, nem europeus, nem ucranianos estão em Riad. Peskov disse que Putin poderia falar diretamente com Zelenski “se necessário”, mas voltou a questionar a legitimidade do presidente, cujo mandato terminou em maio passado —sob lei marcial, a Ucrânia não pode realizar eleições.
A comitiva russa é encabeçada pelo chanceler Serguei Lavrov, o decano da diplomacia mundial, e o experiente Iuri Uchakov, que assessora Putin desde 2012.
Eles estão acompanhados por Kirill Dmitriev, o chefe do fundo soberano russo, figura famosa por ter financiado e promovido a vacina anti-Covid Sputnik V, que tentou vender até ao Brasil. Um ex-banqueiro com treinamento ocidental, ele é conhecido como negociador astuto.
Em uma rápida fala antes do encontro, no Palácio Diriyah, Dmitriev afirmou que as conversas serão mais amplas que Ucrânia, um outro sinal do Kremlin, e poderão incluir o programa nuclear do Irã. Trump deixou o acordo que tentava afastar os aiatolás da bomba atômica em 2018, e desde então Teerã aumentou sua capacidade de produção de material físsil para armas nucleares.
Em janeiro, Rússia e Irã assinaram um acordo aprofundando seus laços econômicos e militares, e com a posição enfraquecida de Teerã devido às guerras de Israel na esteira do 7 de Outubro, Putin pode ter o que oferecer aos EUA, arquirrivais do país persa ao lado do Estado judeu.
Do lado americano, estão presentes o secretário de Estado, Marco Rubio, o assessor de Segurança Nacional, Michael Waltz, e o enviado para o Oriente Médio, Steve Witkoff. O encontro é mediado pelo chanceler saudita, príncipe Faisal bin Farhan a-lSaud e seu assessor de Segurança, Mosaad bin Mohammad al-Aiban.
As conversas começaram às 10h30 (4h30 em Brasília). O enviado de Trump para Rússia/Ucrânia, Keith Kellogg, não está presente: ele ficou em Bruxelas tentando acalmar os europeus acerca das negociações, lançadas de forma intempestiva pelo presidente americano em um telefonema a Putin na semana passada.
Como a Folha havia relatado, o Kremlin havia colocado um pé no freio da miríade de contatos realizados indiretamente por prepostos de Trump desde a posse do americano, há um mês. Deu certo: o mercurial presidente entrou no circuito e, se não cumpriu a bravata de “acabar com a guerra em um dia”, ao menos viu algo acontecer.
A invasão levou os laços entre as duas maiores potências nucleares do mundo, que deverão também discutir controle desses armamentos, ao pior nível desde a Guerra Fria. Trump já havia deixado 2 dos 3 principais tratados para evitar um conflito atômico em seu mandato anterior, e Putin suspendeu a participação russa no principal deles em 2023.
Zelenski já disse que não aceitará nenhum acordo que não o ouça, e líderes europeus se reuniram para reafirmar que o continente precisa se rearmar para não mais depender dos EUA na segunda (18), embora sem ter muito o que fazer acerca das conversas em Riad.
A posição autoritária americana foi deixada clara na sexta (14), quando o vice-presidente J.D. Vance proferiu um incendiário discurso em Munique criticando duramente os países europeus por coibirem sua extrema-direita, dizendo que eles deveriam se virar em termos defensivos pois os EUA não estariam lá para sempre.
noticia por : UOL