4 de março de 2025 - 6:31

Militares questionam proibição de trans nas forças dos EUA decretada por Trump

A sargento Julia Becraft reuniu uma dúzia de soldados de infantaria em Fort Cavazos, no Texas, e se apresentou como a nova líder do esquadrão. Ela disse que eles estavam em boas mãos: ela havia sido destacada para o Afeganistão três vezes, vira muitos combates de perto e fora condecorada. Além disso, informou, ela era uma pessoa trans.

Becraft se preocupava com esse momento desde que fizera a transição, um ano antes. Como os soldados reagiriam? Eles aceitariam ser liderados por uma mulher trans?

Por alguns segundos, ninguém falou. Então, acenos de aceitação começaram a surgir. Outros soldados começaram a se apresentar também, compartilhando algo sobre as próprias vidas. Depois, todos foram fazer o treinamento físico matinal, como qualquer outro esquadrão de seu batalhão.

“A princípio, dava para perceber que alguns estavam surpresos”, afirmou Becraft. “Mas eles viram que eu estava sendo sincera e respeitavam a minha experiência. O fato de eu ser trans não era tão relevante assim.”

Becraft não se reconhece no retrato que a administração Trump faz dos integrantes trans das Forças Armadas. A administração diz, sem apresentar evidências, que os soldados trans sobrecarregam o governo com altos custos de saúde e prejudicam a eficácia militar.

Um decreto do Executivo do mês passado afirmou que ser transgênero representa um conflito “com o compromisso dos soldados de manter um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado”. Na noite de quarta-feira (26), o Departamento de Defesa divulgou um memorando dizendo que os soldados trans que estão servindo agora seriam forçados a sair.

“É a política do governo dos Estados Unidos estabelecer altos padrões […] para os membros de suas Forças Armadas”, disse o comunicado que explicava a nova política governamental. Soldados essenciais podem obter uma isenção se não tiverem mudado de sexo e conseguirem convencer o governo de sua importância.

Alguns membros trans das Forças Armadas contestam as novas orientações na Justiça. Eles dizem que suas experiências no serviço militar dificilmente se encaixam nas descrições de seus críticos. Em duas dúzias de entrevistas, muitos disseram à reportagem que, apesar das representações negativas, ser transgênero nas Forças Armadas não é um grande problema.

Os soldados entrevistados —três pilotos, um especialista em explosivos, um oficial de operações especiais, um supervisor de reatores nucleares, uma enfermeira de voo, um comandante de bateria de mísseis e outros— disseram que enfrentaram algumas barreiras institucionais e ouviram alguns comentários ácidos a respeito de si mesmos.

Mas, na maioria das vezes, dizem ter sido tratados com respeito. Seus líderes os apoiaram, seus colegas os aceitaram, e eles conquistaram boas avaliações de desempenho e promoções.

Oficiais e soldados que não são trans disseram em entrevistas que não sentiram nenhum impacto negativo ao trabalharem com soldados trans.

Não que se assumir tenha sido fácil para esses oficiais. O casamento de Becraft, por exemplo, não sobreviveu à sua transição de gênero.

Mas quando ela contou ao Exército que era trans, sua brigada ofereceu um trabalho burocrático temporário, com um horário mais flexível, para que ela pudesse conciliá-lo com o início de sua transição e com sessões de terapia. Um ano depois, ela voltou a liderar soldados.

“Desde que fiz a transição, me tornei uma líder melhor”, afirmou Becraft em uma entrevista anterior ao anúncio do banimento. “Estou mais confortável. Não preciso esconder nada. Acho que talvez seja mais sábia, e que meus soldados respondem a isso.”

Antes de a decisão de dispensar todos os soldados trans ser anunciada, ela esperava ser promovida.

Muitos soldados trans, como milhões de outros nos EUA, viam as Forças Armadas como um caminho de oportunidade aberto a um grupo cada vez mais diverso de americanos.

O presença de pessoas trans no serviço militar tem sido, no entanto, um campo de batalha entre os militares há uma década. O ex-presidente Barack Obama derrubou a proibição que determinava que transgêneros não podiam servir em 2016, seis anos depois de assinar uma lei permitindo que membros das Forças Armadas LGBTQIA+ se assumissem no trabalho. No ano seguinte, o presidente Donald Trump anunciou uma nova proibição, que o presidente Joe Biden reverteu em 2021.

Durante a administração Biden, milhares de membros trans das forças armadas, que já serviam há anos, se assumiram.

Mesmo assim, os soldados trans ainda representam apenas uma pequena parte das Forças Armadas. Atualmente, há 4.240 soldados trans no Exército, ou cerca de 0,2% da força, de acordo com números divulgados na quinta-feira (27).

O Secretário de Defesa, Pete Hegseth, afirmou que os soldados trans são estranhos e representam “uma distração”. Vários oficiais militares que comandaram unidades com soldados trans disseram que essa não foi a experiência deles.

“Eles tentaram tornar isso um grande problema, assim como fizeram no passado com a integração das mulheres ou dos afro-americanos, mas estão fazendo uma tempestade em copo d’água”, afirma o capitão Justin Long, que se aposentou da Marinha em 2023 após mais de 20 anos de serviço.

“Tive 15 marinheiros trans sob meu comando ao longo dos anos e nunca tive um problema. Os outros marinheiros os tratam como qualquer outra pessoa. Tudo o que eles querem saber é: você vai aparecer e fazer o seu trabalho?”

Nos últimos anos, as Forças Armadas passaram a olhar o atendimento médico relacionado a gênero da mesma maneira que lidam com ossos quebrados, diagnósticos de câncer ou dezenas de outros problemas médicos que os soldados enfrentam. Para receber tratamento, deve haver um diagnóstico, um plano de tratamento e coordenação com os comandantes para evitar interferências em missões ou em treinamentos importantes.

“Nós não os tratamos de forma diferente, e nem deveríamos”, diz Long. Ele afirma que forçar todos os soldados trans a saírem ignora as recomendações dos líderes seniores e “vai contra a ciência e a realidade”.

A administração Trump ainda afirmou que o custo do atendimento relacionado à mudança de gênero é alto demais, embora não tenha apresentado nenhum número.

Na quinta, um juiz federal ordenou que o Departamento de Defesa divulgasse as cifras pela primeira vez. Os dados mostraram que as Forças Armadas gastaram US$ 52 milhões (aproximadamente R$ 300 milhões) em cuidados relacionados a mudança de gênero desde 2015, ou cerca de US$ 9.000 (cerca de R$ 50 mil) por indivíduo.

O departamento disse que cerca de metade dos soldados trans não precisaram de cuidados médicos de mudança de gênero, e apenas um quarto recebeu cirurgia relacionada.

Há outro custo que raramente é mencionado, disse a comandante Emily Shilling, uma condecorada piloto de caça da Marinha: o custo de perder membros altamente treinados.

Shilling fez 60 missões de combate e é presidente da Sparta Pride, uma organização de defesa para soldados trans. Ela disse que muitos soldados trans são pessoas como ela: oficiais seniores cuja substituição será complexa e cara.

A Marinha gastou milhões de dólares com o treinamento dela e em suas horas de voo e a enviou para uma pós-graduação para prepará-la para responsabilidades maiores, diz ela. Agora, ela ajuda a supervisionar um programa de drones lançados por porta-aviões de vários bilhões de dólares.

“Somos um ativo extremamente valioso para simplesmente jogar fora”, afirma Shilling. “Por que você gostaria de se livrar de alguém em quem você investiu tanto?”

noticia por : UOL

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