4 de março de 2025 - 12:25

Sobre gramados e opiniões artificiais

A polêmica do gramado incendiou quando um grupo de jogadores de elite manifestou seu descontentamento com o piso sintético. A fumaça se alastrou pelos programas jornalísticos, mesas de bar e redes sociais. Não há quem não tenha uma opinião sobre o assunto —como não há quem não tenha opinião sobre tudo hoje em dia.

Porém, Sócrates —não o jogador— costumava dar de ombros à mera opinião (doxa), por considerá-la enublada pelos sentidos e pela paixão. O fato de os defensores dos campos artificiais serem a esmagadora maioria entre os torcedores de Palmeiras, Atlético e Botafogo (adeptos do campo artificial), e o inverso ocorrer entre seus adversários, é sinal de que o grego era mesmo um craque do pensamento — assim como o xará da camisa 8.

Em contendas sentimentais como essa, a racionalidade da ciência pode contribuir. Em setembro de 2024, quando o tema ainda estava em banho-maria, escrevi sobre os riscos de lesão em gramados sintéticos. Atualizo: segue não havendo evidências de que esses campos representem uma ameaça à segurança dos jogadores. Essa conclusão, contudo, não pode ser incondicionalmente generalizada para locais onde não se tem estudos. Entre as confederações que optaram por jogar no escuro, está a brasileira. Cobrado pela inação, Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, disse ao UOL que a entidade “está fazendo um estudo bastante profundo dentro do Brasil, não com dados científicos externos”. Saiu-se com a máxima da pizzaria em caos:

“–Meu senhor, cadê a pizza que pedi há um tempão?”

“—Saiu agorinha mesmo, chefe!”

Para enganarmos a fome, convido o leitor a relembrar as incógnitas sobre o tema e a exercitar o raciocínio científico na esperança de esclarecê-las.

A começar pela central: a prevalência de lesões difere entre os tipos de gramados brasileiros? Uma resposta convincente demandaria comparar a ocorrência de lesões normalizada pelo tempo de exposição. Ou seja, a cada x horas de futebol praticado, houve um número y de lesões no piso sintético e z no natural. Testes estatísticos triviais permitiriam dizer se y e z são diferentes.

A superfície influencia a gravidade e os tipos de lesões (musculares, articulares, ósseas etc)? A aplicação do mesmo método comparativo, mas agora classificando as lesões por tipologia e intensidade, sanaria essa lacuna.

Quem são os atletas que se machucam em cada tipo de gramado? A experiência prévia ou a prática atual no piso sintético protege contra lesão? Mulheres e homens estão sujeitos aos mesmos riscos? Análises segmentadas conforme as características dos lesionados poderiam esclarecer essas dúvidas.

Como a escassez de recursos não é uma justificativa plausível para a CBF se opor à ampliação do estudo, também seria interessante investigar se jogadores das categorias de base —mais habituados ao gramado artificial do que as gerações anteriores— estão sujeitos a riscos aumentados ou reduzidos nos diferentes pisos.

Uma investigação dessa natureza traria um conhecimento verdadeiro —ou episteme, no jargão socrático — acerca dos riscos de lesão nos gramados brasileiros. Ainda assim, não diria nada sobre a preferência dos jogadores por um ou outro tipo de campo. “Mas os jogadores já disseram que preferem o natural!” Bem, caro leitor, se você acredita que Neymar, Gabigol, Lucas e outros craques com passagens pela elite do futebol europeu — com seus gramados naturais mais exuberantes que os carpetes da esposa do Abel —representam a maioria dos atletas brasileiros, o assunto estará resolvido.

Particularmente, gostaria de ouvir também o que pensam os que se formaram nos terrões e ainda pelejam nos esburacados campos das quatro desiguais divisões do futebol brasileiro. Para isso, seria útil entrevistar uma amostra reduzida, mas representativa, de jogadores, selecionada probabilisticamente — como se faz em pesquisas eleitorais, por exemplo. Fundamental seria garantir o anonimato desses atletas, afinal, ninguém quer se indispor com dirigentes, torcedores e ídolos midiáticos.

Feito isso e com as evidências às claras, a discussão não estaria amarrada à doxa —que, como se sabe desde os antigos, cada um tem a sua.


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noticia por : UOL

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