Seja na expressão literal do presidente, seja na sua relação histórica com Gleisi, nada há que sugira que ele a escalou para tarefas cruciais, em momentos verdadeiramente agônicos do partido e do governo, em razão de sua aparência física. As acusações de machismo — e vamos ver a derivação teratológica que tal ilação assumiu no vomitório bolsonarista — me parecem decorrentes de um caso de superinterpretação que induz uma super-reação. No livro “Interpretação e Superinterpretação”, Umberto Eco nota: “Pode ser um pouco rude eliminar o pobre autor como algo irrelevante para a história de uma interpretação”.
VAMOS VER
Quais adjetivos que Lula poderia ter empregado em lugar de “bonita” sem que gerasse estranhamento? E, suponho, o problema não está no substantivo porque, até onde acompanho, reivindicam-se mais mulheres no primeiro escalão. Vamos lá: “petista”, “leal”, “severa”, “experiente”, “exigente”, “disciplinada”, “determinada”, “trabalhadora”, “dedicada”, “gentil”… A uma mulher se podem atribuir todas as qualidades, parece, que a fortaleceriam, em pé de igualdade, com os homens. O que a fragilizaria então? Ser chamada de “bonita”?
E não! O presidente não está a dizer — e seria “rude eliminar o pobre autor como algo irrelevante na história da interpretação” — que o trabalho de Gleisi será facilitado porque ele a considera ou porque ela é bonita. Isso não está lá. Leia-se o conjunto da fala. É falso que ele tenha estabelecido ali uma relação de causalidade. Cuidado! Essa é a leitura abjeta que fez um discípulo do “Coiso”… Vivemos, é fato, dias um tanto complexos. Recomendo que os homens se abstenham de fazer comentário sobre a aparência de profissionais mulheres em qualquer ramo de atividade, exceto naqueles em que determinados atributos são importantes para o exercício profissional. Pode ser um excesso de cuidado, mas é o mais prudente. Posto isso, avancemos.
OS LEGADOS DE LULA E TAREFAS DE GLEISI
O autor não é irrelevante na história da interpretação, certo? Lula tem dois legados: um deles são os seus mandatos, que passam, embora deixem uma herança. O outro é o PT, com a vocação da permanência. Ele a fez presidenta no momento mais delicado da história da legenda, em 2017, quando se fez necessário atravessar o deserto. No ano seguinte, foi preso e permaneceu 580 dias encarcerado. Sob o comando de Gleisi, o petismo disputou o segundo turno em 2018, resistiu à voragem fascistóide e reconduziu a maior liderança operária da história do Brasil à Presidência da República. Bastam uma frase intercalada e um adjetivo, uma miserável palavra, para reescrever a história? Não. Se tivesse dito apenas “eu coloquei essa mulher”, não haveria margem para leituras enviesadas. “Ser mulher” pode, ainda bem! “Ser mulher bonita” é que o X do problema.
Mas há mais. No dia 28 do mês passado, veio a público a informação de que era a deputada a escolhida para o ministério das Relações Institucionais, o cargo político mais importante do governo. Não foram poucos os colunistas e as colunistas que viram na escolha uma “guinada de Lula à esquerda”. O presidente teria optado por uma petista dura, irascível, “inimiga de Fernando Haddad”. Ela só não foi chamada de “santa” e de “bonita”. É possível, diga-se, que muito machismo e muita misoginia, inclusive na pena de mulheres, tenham sido recobertos por manifestações de antipetismo explícito.
Mas que se note — e convém não ser rude com o autor, colocando-o na interpretação: Lula escala a “mulher bonita” para a dificílima tarefa da coordenação política naquele que é, segundo a quase unanimidade dos analistas, o momento mais difícil dos seus três mandatos. Quantas foram as colunas que já decretaram a derrota do presidente em 2026 e a vitória da direita? Os extremistas de centro estão verdadeiramente obcecados com essa ideia. Em certa medida, os ataques dirigidos a Gleisi, por ocasião da sua indicação, buscavam descaracterizar até a sua condição de mulher: Lula teria escolhido um “quadro” para tentar impor a linha justa do partido.
noticia por : UOL