1 de abril de 2025 - 21:52

Como a Alemanha está deixando passado para trás e se prepara para possível guerra

A agressão russa e o isolacionismo dos EUA levam a Alemanha, outrora hesitante, a investir fortemente em defesa. Um lançador de mísseis espalha uma nuvem de poeira marrom no ar enquanto atravessa um campo em direção à linha de frente. Momentos depois, vem a contagem regressiva de um soldado: “cinco, quatro, três, dois, um…. Fogo!”, antes de um foguete disparar no céu.
As explosões e os estrondos desses exercícios de treinamento militar são tão constantes que os moradores da pequena cidade vizinha de Munster, na Alemanha, quase não percebem mais.
Mas a vida aqui está prestes a ficar ainda mais barulhenta.
As Forças Armadas alemãs, conhecidas como Bundeswehr, receberam recentemente sinal verde para um aumento significativo de investimentos depois que o Parlamento aprovou um projeto de lei que isenta os gastos militares das rígidas regras de dívida nacional do país.
O general Carsten Breuer, chefe da Defesa da Alemanha, disse à BBC que o aumento do gasto militar é urgentemente necessário, uma vez que ele acredita que a agressão russa não vai parar na Ucrânia.
“Estamos ameaçados pela Rússia. Somos ameaçados por (Vladimir) Putin. Temos que fazer o que for necessário para impedir isso”, afirmou Breuer. Ele adverte que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) deve estar preparada para um possível ataque nos próximos quatro anos.
“Não se trata de quanto tempo eu preciso, mas sim de quanto tempo Putin vai nos dar para estarmos preparados”, acrescenta abertamente o general. “E quanto mais cedo estivermos preparados, melhor.”
A guinada
A invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia mudou profundamente o pensamento na Alemanha.
Há décadas, as pessoas aqui são criadas rejeitando o poderio militar, bastante conscientes do papel que a Alemanha desempenhou no passado como agressora na Europa.
“Iniciamos duas guerras mundiais. Embora já tenham se passado 80 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de que os alemães devem ficar fora de conflitos ainda está muito presente no DNA de muitas pessoas”, explica Markus Ziener, da organização sem fins lucrativos German Marshall Fund, em Berlim.
Alguns continuam desconfiados de qualquer coisa que possa ser vista como militarismo, até mesmo agora, e as Forças Armadas têm sido cronicamente subfinanciadas.
“Há vozes que advertem: ‘Estamos realmente no caminho certo? Nossa percepção de ameaça está correta?”
Em relação à Rússia, a Alemanha adotou uma abordagem específica.
Enquanto países como a Polônia e os Estados Bálticos advertiam contra a aproximação excessiva com Moscou — e aumentavam seus próprios gastos com defesa —, Berlim, sob o comando da ex-chanceler Angela Merkel, acreditava em fazer negócios.
A Alemanha achou que estava fazendo a democratização por osmose. Mas a Rússia pegou o dinheiro e invadiu a Ucrânia mesmo assim.
Então, em fevereiro de 2022, o chanceler Olaf Scholz, um tanto atordoado, declarou uma guinada nacional nas prioridades, uma “Zeitenwende”.
Foi quando ele se comprometeu a investir a monumental quantia de 100 bilhões de euros (R$ 623 bilhões) para fortalecer as Forças Armadas do país e manter “belicistas como Putin” sob controle. Mas o general Breuer diz que isso não foi suficiente.
“Nós tapamos um pouco os buracos”, ele afirma. “Mas a situação é muito ruim.”
Em contrapartida, ele cita os altos gastos da Rússia com armas e equipamentos, tanto para estoque quanto para a linha de frente na Ucrânia.
Ele também destaca a guerra híbrida da Rússia: de ataques cibernéticos a sabotagem, além de drones não identificados sobre instalações militares alemãs.
Soma-se a isso a retórica agressiva de Vladimir Putin, e o general Breuer vê “uma mistura realmente perigosa”.
“Diferentemente do mundo ocidental, a Rússia não está pensando em caixas. Não se trata de tempo de paz e guerra, é um continuum: vamos começar com o híbrido, depois escalar, e depois voltar. Isso é o que me faz pensar que estamos enfrentando uma ameaça real”.
Ele argumenta que a Alemanha precisa agir rapidamente.
‘Muito pouco de tudo’
A avaliação contundente do chefe da Defesa sobre a situação atual de suas forças coincide com um relatório recente apresentado ao Parlamento. A Bundeswehr, concluiu o texto, tinha “muito pouco de tudo”.
A autora do relatório, a comissária das Forças Armadas Eva Högl, revelou uma terrível escassez, que vai de munição a soldados, até quartéis em ruínas. Ela estimou o orçamento apenas para obras de renovação em cerca de 67 bilhões de euros (R$ 415 bilhões).
A suspensão do teto da dívida, permitindo que as Forças Armadas façam empréstimos — em teoria, sem limites —, vai oferecer acesso a uma “linha estável” de financiamento para começar a resolver esse problema, segundo o general Breuer.
A iniciativa histórica foi tomada às pressas pelo provável sucessor de Scholz, Friedrich Merz, o que pegou muitos de surpresa. Ele apresentou a proposta ao Parlamento pouco antes de ele ser dissolvido após as eleições de fevereiro.
O novo Parlamento, com uma esquerda antimilitarista e uma direita radical que simpatiza com a Rússia, poderia ter se mostrado menos favorável.
Mas a “guinada” que a Alemanha iniciou em 2022 ganhou novo impulso neste ano.
Uma pesquisa recente do instituto YouGov mostrou que 79% dos alemães ainda veem Vladimir Putin como “muito” ou “bastante” perigoso para a paz e a segurança europeias.
Agora, 74% disseram o mesmo sobre Donald Trump.
A pesquisa foi realizada após um discurso em Munique, no qual o vice-presidente americano, J.D. Vance, atacou a Europa e seus valores.
“Esse foi um sinal claro de que algo mudou fundamentalmente nos EUA”, diz Markus Ziener.
“Não sabemos para onde os EUA estão indo, mas sabemos que a crença de que podemos confiar 100% na proteção americana quando se trata da nossa segurança — essa confiança agora acabou.”
Deixando a história para trás
Em Berlim, a tradicional cautela dos alemães em relação a todos os assuntos militares parece estar desaparecendo rapidamente.
Charlotte Kreft, de 18 anos, diz que suas próprias opiniões pacifistas mudaram.
“Durante muito tempo, achamos que a única maneira de compensar as atrocidades que cometemos na Segunda Guerra Mundial era garantir que isso nunca mais acontecesse […] e achamos que precisávamos desmilitarizar”, explica Charlotte.
“Mas agora estamos em uma situação em que temos que lutar por nossos valores, democracia e liberdade. Precisamos nos adaptar.”
“Muitos alemães ainda estranham os grandes investimentos nas nossas Forças Armadas”, concorda Ludwig Stein. “Mas acho que, considerando as coisas que aconteceram nos últimos anos, não há outra opção real.”
Sophie, uma jovem mãe, acha que investir em defesa é “necessário no mundo em que vivemos”.
Mas a Alemanha precisa de soldados, além de tanques, e ela não está muito interessada no alistamento militar do seu próprio filho.
‘Você está pronto para a guerra?’
A Bundeswehr tem apenas um centro de alistamento permanente, uma pequena unidade imprensada entre uma farmácia e uma loja de calçados ao lado da estação Friedrichstrasse de Berlim.
Com manequins camuflados na vitrine, o centro visa atrair homens e mulheres para o serviço militar, mas só recebe um punhado de visitantes por dia.
A Alemanha já não cumpriu a meta de aumentar suas fileiras em 20 mil soldados, para 203 mil, e reduzir a idade média de 34 anos.
Mas as ambições do general Breuer são muito maiores.
Ele diz que a Alemanha precisa de 100 mil soldados extras para se defender e defender adequadamente o flanco oriental da Otan — um total de 460 mil, incluindo reservistas. Por isso ele insiste que um retorno ao serviço militar é “absolutamente” necessário.
“Vocês não vão conseguir esses 100 mil sem algum modelo de serviço militar obrigatório”, declarou o general.
“Não precisamos determinar agora qual vai ser o modelo. Para mim, é importante apenas que consigamos os soldados.”
Esse debate está apenas começando.
O general Breuer está claramente se posicionando à frente de um movimento para promover a “guinada” da Alemanha ainda mais rápido.
Com seu jeito simples e envolvente, ele gosta de visitar prefeituras regionais e desafiar o público com uma pergunta: “Você está pronto para a guerra?”
Um dia, uma mulher o acusou de assustá-la. “Eu disse: ‘Não sou eu que estou assustando você, é o outro cara!'”, ele se lembra da resposta.
Ele estava se referindo a Vladimir Putin.
O duplo alarme para “despertar” — da ameaça da Rússia e de um EUA isolacionista e desinteressado — agora está soando alto na Alemanha, argumenta o general, e não pode ser ignorado.
“Agora é compreensível para cada um de nós que temos que mudar.”
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Fonte: G1

1 de abril de 2025 - 21:52

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