7 de abril de 2025 - 9:30

O sistema que impede Veneza de afundar há mais de 1.600 anos


A cidade foi construída sobre as fundações de milhões de estacas curtas de madeira, socadas contra o solo com a ponta para baixo. Por isso todo mundo diz que Veneza é uma floresta de cabeça para baixo.
Engenheiros antigos geniais criaram um sistema que mantém Veneza em pé há mais de 1,6 mil anos, usando madeira
Emmanuel Lafont/ BBC
Todos os moradores locais sabem que Veneza, na Itália, é uma floresta de cabeça para baixo.
A cidade completou 1.604 anos no dia 25 de março. Ela foi construída sobre as fundações de milhões de estacas curtas de madeira, socadas contra o solo com a ponta para baixo.
As árvores são lariços, carvalhos, amieiros, pinheiros, abetos e elmos, com altura que varia de 3,5 metros até menos de 1 metro. Elas sustentam os palácios de pedra e altos campanários há séculos, formando uma verdadeira maravilha da engenharia, que equilibra as forças da física e da natureza.
Na maioria das estruturas modernas, concreto reforçado e aço fazem o mesmo trabalho que esta floresta invertida mantém há séculos. Mas, apesar da sua força, poucas fundações atuais poderão durar tanto quanto as de Veneza.
“Estacas de concreto ou aço são projetadas hoje em dia [com garantia para durar] 50 anos”, afirma o professor de geomecânica e engenharia de geossistemas Alexander Puzrin, do Instituto Federal de Tecnologia (ETH) de Zurique, na Suíça.
“É claro que elas podem durar mais tempo, mas, quando construímos casas e estruturas industriais, o padrão é de 50 anos de vida”, explica o professor.
Apenas uma vez, no início da carreira, um cliente solicitou a Puzrin que oferecesse uma garantia de 500 anos, para a construção de um templo Bahá’í em Israel. “Fiquei meio que chocado, porque isso era incomum”, relembra ele.
“Fiquei muito assustado e eles queriam que eu assinasse. Liguei para o meu patrão em Tel Aviv [Israel], um velho engenheiro com muita experiência, e perguntei ‘o que vamos fazer? Eles querem 500 anos.'”
“Ele respondeu: ‘500 anos? [pausa] Assine.’ Nenhum de nós vai estar aqui.”
➡️A técnica veneziana usando estacas é fascinante pela sua geometria, sua secular resistência e sua imensa escala.
Ninguém tem absoluta certeza de quantos milhões de estacas existem sob a cidade. O que se sabe é que há 14 mil postes de madeira firmemente instalados, apenas nas fundações da ponte Rialto, mais 10 mil carvalhos sob a Basílica de São Marcos, construída no ano 832.
“Nasci e cresci em Veneza”, conta a professora de química ambiental e patrimônio cultural Francesca Caterina Izzo, da Universidade de Veneza.
“Quando era criança, como todos os demais, eu sabia que, no subsolo das construções de Veneza, existem as árvores de Cadore [a região montanhosa perto de Veneza]”, relembra ela. “Mas eu não sabia como essas estacas foram colocadas, como elas foram contadas e derrubadas, nem que os battipali (“batedores de estacas”, em tradução literal) eram uma profissão muito importante.”
“Eles tinham até as suas próprias canções”, ela conta. “É fascinante, do ponto de vista técnico e tecnológico.”
Os battipali martelavam as estacas manualmente e cantavam uma música antiga para manter o ritmo – uma melodia assombrosa e repetitiva, com letras que elogiavam Veneza, sua glória republicana, sua fé católica e declaravam morte ao inimigo da época, os turcos.
Em tom mais leve, uma expressão veneziana em uso até hoje diz na testa da bater pai (“uma cabeça boa para bater estacas”). É uma forma descontraída de dizer que alguém é apático ou tem raciocínio lento.
As estacas eram imobilizadas o mais fundo possível, até que não pudessem mais ser comprimidas, começando na extremidade externa da estrutura e se movendo em direção ao centro das fundações.
Normalmente, eram nove estacas por metro quadrado em formato espiral. As pontas eram serradas para obter uma superfície regular, que ficaria abaixo do nível do mar.
Por cima, foram colocadas estruturas de madeira transversais – zatteroni (placas) ou madieri (feixes).
No caso dos campanários, estes feixes ou placas tinham espessura de até 50 cm. Para outras construções, as dimensões eram de 20 cm ou até menos.
Carvalho era a madeira mais resistente, mas também a mais preciosa. O carvalho, posteriormente, só seria usado para construir navios, pois era valioso demais para ser enterrado na lama.
E, sobre a estrutura de madeira, os trabalhadores colocariam as pedras da construção.
A República de Veneza logo começou a proteger suas florestas, para fornecer madeira suficiente para construir a cidade e os navios.
“Veneza inventou a silvicultura”, explica Nicola Macchioni, diretor de pesquisa do Instituto de Bioeconomia do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. Silvicultura é a prática de cultivar árvores.
“O primeiro documento oficial sobre silvicultura na Itália, de fato, é da Magnífica Comunidade do Vale de Fiemme [a noroeste de Veneza], datado de 1111. Ele detalha as regras de exploração da madeira sem causar seu esgotamento.”
Para Macchioni, estas práticas de conservação já deviam ser empregadas anos antes de serem escritas.
“Isso explica por que o Vale de Fiemme ainda é coberto por uma exuberante floresta de pinheiros hoje em dia.” E, enquanto isso, países como a Inglaterra já enfrentavam escassez de madeira em meados do século 16, explica ele.
Veneza não é a única cidade que emprega estacas de madeira nas suas fundações. Mas existem diferenças fundamentais que fazem da cidade italiana um caso único.
Amsterdã, na Holanda, é outra cidade construída parcialmente sobre estacas de madeira. Ali e em muitas outras cidades do norte da Europa, elas descem pelo subsolo até encontrarem o leito rochoso, funcionando como longas colunas ou as pernas de uma mesa.
“O que é ótimo, se a rocha estiver próxima da superfície”, explica o professor de arquitetura Thomas Leslie, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Mas, em muitas regiões, o leito rochoso fica muito além do alcance das estacas.
Leslie mora nas margens do lago Michigan, nos Estados Unidos. Ali, o leito rochoso pode ficar a até 30 metros abaixo da superfície.
“Encontrar árvores desta altura é difícil, não? Existem histórias de Chicago nos anos 1880 em que eles tentaram colocar um tronco de árvore em cima do outro, o que, como você pode imaginar, acabou não funcionando. Por fim, eles perceberam que você pode confiar na fricção do solo.”
O princípio é baseado na ideia de reforço do solo, espetando o máximo de estacas possível. Este processo cria fricção substancial entre as estacas e o solo.
“O inteligente sobre isso é que você meio que usa a física”, explica Leslie. “A beleza é que você está usando a natureza fluida do solo para fornecer resistência para sustentar as construções.”
➡️O nome técnico é pressão hidrostática. Ela significa essencialmente que o solo “aperta” as estacas, se muitas delas forem inseridas densamente em um ponto, segundo ele.
De fato, é assim que funcionam as estacas venezianas. Elas são curtas demais para atingir o leito rochoso e, em vez disso, mantêm os edifícios em pé graças à fricção. Mas a história desta forma de construção remonta a muito tempo atrás.
A técnica foi mencionada pelo engenheiro e arquiteto romano Vitrúvio, do século 1º a.C. Os romanos teriam usado estacas submersas para construir pontes, que também ficam perto da água.
A China também construiu portais de água usando estacas de fricção. E os astecas usaram estacas em Tenochtitlán (hoje Cidade do México), antes da chegada dos espanhóis – que destruíram a cidade velha e construíram no mesmo lugar sua catedral católica, destaca Puzrin.
“Os astecas sabiam construir no seu ambiente muito melhor que os espanhóis, que vieram depois”, explica ele. “Agora, eles têm enormes problemas com sua catedral metropolitana”, pois seu piso está afundando de forma irregular.
Puzrin leciona em um curso de graduação da ETH que investiga falhas geotécnicas famosas.
“E esta é uma dessas falhas”, afirma ele. “A catedral e a Cidade do México como um todo são um museu a céu aberto de tudo o que pode dar errado com as suas fundações.”
Depois de mais de um milênio e meio na água, as fundações de Veneza se mostraram incrivelmente resistentes. Mas não são imunes à degradação.
Dez anos atrás, uma equipe das universidades italianas de Pádua e Veneza (incluindo o departamento florestal e de engenharia até o de patrimônio cultural) investigaram as condições das fundações da cidade, a começar do campanário da Basílica dei Frari, construído em 1440 sobre estacas de amieiro.
O campanário afunda 1 mm por ano desde a sua construção, atingindo um total de 60 cm.
Em comparação com as igrejas e edifícios, os campanários têm mais peso distribuído sobre uma superfície menor. Por isso, eles afundam mais e com maior rapidez, “como um salto agulha”, segundo Macchioni. Ele fez parte da equipe que investigou as fundações da cidade.
Caterina Francesca Izzo trabalhava no campo, perfurando, coletando e analisando amostras de madeira do subsolo das igrejas, campanários e das laterais dos canais, que, na época, estavam sendo esvaziados e limpos.
Ela declarou que eles precisavam trabalhar com cuidado no fundo dos canais secos, para evitar o esgoto que jorrava esporadicamente dos canos laterais.
A equipe descobriu que, em todas as estruturas investigadas, a má notícia era que a madeira estava danificada, mas o sistema formado pela água, madeira e lama mantinha tudo aquilo unido, o que é bom.
Os pesquisadores desmentiram a crença comum de que a madeira no subsolo da cidade não se deteriora por ser mantida sem oxigênio, em condições anaeróbicas.
Na verdade, as bactérias atacam a madeira, mesmo na ausência de oxigênio. Mas sua ação é muito mais lenta do que a ação dos fungos e insetos, que trabalham na presença de oxigênio.
Além disso, a água preenche as células esvaziadas pelas bactérias, o que permite que as estacas de madeira mantenham seu formato. Por isso, mesmo que as estacas de madeira sejam danificadas, o sistema completo de madeira, água e lama é mantido coeso sob intensa pressão, mantendo sua resistência por séculos.
“Existe algo para se preocupar?”, questiona Izzo. “Sim e não, mas devemos ainda verificar a continuidade deste tipo de pesquisa.”
Desde o trabalho realizado 10 anos atrás, eles não coletaram novas amostras, principalmente devido à logística envolvida.
Macchioni ressalta que não se sabe por quantos séculos as fundações ainda irão durar. “Mas será enquanto o ambiente permanecer inalterado.”
“O sistema de fundações funciona porque é feito de madeira, solo e água.” O solo cria um ambiente livre de oxigênio, a água também contribui para isso e mantém o formato das células, enquanto a madeira fornece fricção. Sem um destes três elementos, o sistema desaba.
Nos séculos 19 e 20, a madeira foi totalmente substituída por cimento na construção de fundações. Mas, nos últimos anos, uma nova tendência de construção com madeira vem despertando mais interesse, incluindo o aumento dos arranha-céus de madeira.
“É meio que o material da moda, agora, por razões muito boas”, comenta Leslie. Afinal, a madeira é um sifão de carbono, biodegradável e, graças à sua flexibilidade, é considerada um dos materiais mais resistentes a terremotos.
“É claro que não podemos construir cidades inteiras de madeira, pois existem muitas no planeta”, destaca Macchioni. Mas é inegável que, como os construtores antigos não contavam com motores e materiais artificiais, eles simplesmente precisaram ser mais criativos.
Veneza não é a única cidade com fundações de madeira, mas é “a única [em que a técnica de fricção foi empregada] em massa, continua sobrevivendo hoje em dia e é imensamente bonita”, ressalta Puzrin.
“Havia pessoas ali que não estudaram a mecânica do solo e a engenharia geotécnica e, ainda assim, geraram algo que durou tanto tempo e só conseguimos produzir em sonhos. Eles eram engenheiros incríveis e intuitivos, que fizeram exatamente a coisa certa, aproveitando todas estas condições especiais.”
As ilustrações desta reportagem têm apenas propósitos artísticos. Elas não são representações reais das fundações de estacas de madeira no subsolo de Veneza, que são firmemente compactadas e não têm galhos.
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Fonte: G1

7 de abril de 2025 - 9:30

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