
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista com atuação em Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, na Espanha, mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Internacional de La Rioja
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista com atuação em Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, na Espanha, mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Internacional de La Rioja
FILIPE MAIA BROETO
Bastante se tem falado, nos últimos dias, sobre uma crise mundial no “mercado de luxo”1. Vídeos têm circulado nas redes sociais dando conta de que grandes marcas, reconhecidas no mercado de luxo por um processo de fabricação artesanal, com extrema qualidade e exclusividade, adquirem seus produtos praticamente prontos de fábricas chinesas.
Nesse sentido, é a matéria publicada no sítio virtual Steal The Look:
> […] supostos fornecedores chineses das grandes maisons disseram que, na verdade, são eles os responsáveis pela fabricação, em larga escala, de bolsas e outros produtos de luxo, que são vendidos como trabalho artesanal feito nos ateliês de seus países de origem.2
Segundo consta da matéria, “de acordo com as denúncias — que, até agora, não foram comprovadas — as bolsas, sapatos e roupas são produzidas em fábricas chinesas por preços baixos e mandadas para os países das marcas, que ficam responsáveis apenas pela montagem final de cada produto. Dessa maneira, seria permitido que o item pudesse receber o selo de “Made in Italy” ou “Made in France”, dependendo do local de origem da maison”. 3
A conclusão a que chega o Steal The Look é a de que “tecnicamente, esse processo estaria dentro da lei, mas fere a imagem de exclusividade e tradição artesanal que essas grifes construíram ao longo das décadas e comunicam até hoje”. 4
Tratando-se ou não de uma “guerra comercial entre Estados Unidos e China” 5 , a questão pode ser mais complexa do que aparenta e, caso essas denúncias – por ora, não comprovadas – sejam comprovadas, pode-se estar, no mínimo, diante de possível crime contra as relações de consumo.
Isso porque, se as bolsas são majoritariamente fabricadas na China, em larga escala, sem o componente que as torna “exclusiva”, que é a artesanalidade e a exclusividade, há informações falsas e enganosas sendo repassadas aos consumidores.
Bem se sabe que, nas relações comerciais, existe o chamado “dolus bonus”, mecanismo diuturnamente empregado em propagandas empresariais eaceito sem maiores reprovações. “Dolus bonus”, no entanto, nada tem a ver com “engodo”, “mentira” ou omissão de informações relevantes, o que, sem dúvida, para além de ser eticamente reprovável, pode, em tese, constituir crime.
Quem compra uma bolsa da Hermès, Gucci ou Louis Vuitton, por exemplo, não compra apenas uma bolsa, tampouco compra apenas a qualidade, o que inúmeras outras marcas também podem oferecer a preços significativamente menores.
Quem compra uma Hermès, compra a história da marca, a artesanalidade no fabrico das peças (ou obras de arte, como são chamadas), a exclusividade que o produto proporciona, etc.
Conforme a Watches Words, “alguns dos artesãos escolhidos para executar suas obras-primas da Hermès têm mais de 30 anos de experiência. É esse comprometimento que torna a complexidade e os detalhes de cada bolsa Hermès uma obra de arte completa e uma extensão do espírito pioneiro da marca”. 6
Nesse contexto, duas questões importantes se destacam:
A primeira é: uma bolsa que é quase na totalidade fabricada na China, com poucos componentes de acabamento realizados na França ou na Itália, poderia receber um “Selo Made in France ou Made in Italy”? Seria isso uma informação falsa ou mesmo enganosa, apta a configurar crime contra o consumidor, ou apenas um comportamento reprovável do ponto de vista ético-moral?
A segunda é: se o que torna o preço elevado, segundo a narrativa majoritária de grandes marcas de luxo, é justamente a escassez do produto, derivada dos processos manuais de fabricação, capazes de tornar o comprador “exclusivo”, poderiam as marcas, às ocultas, lançar mão de um processo produtivo completamente contrário à história contada para “conquistar” clientes?
A resposta para a primeira questão gira em torno do alcance semântico da expressão “feito/produzido”, isto é, se se pode considerar que algo que foi feito majoritariamente na China, por exemplo, poderia receber um selo que afirme que aquele algo foi produzido na França.
Ainda nessa problemática, ter-se-ia que analisar, de igual modo, se um “acabamento” ou a “colocação de uma logomarca” em algo praticamente “pronto” poderia ser considerado como “fabricação”.
Pelo menos a priori, a resposta parece ser negativa, razão pela qual algo que já chega numa localidade praticamente pronto, não pode conter a informação de que foi produzido no local em que, na realidade, recebeu alguns poucos acabamentos, ainda que refinados.
Dessa forma, o selo contendo a expressão “Made in France” ou “Made in Italy” em produtos cuja maior parte foi produzida na China parece adequar-se, ao menos em tese, à elementar “falsa”, prevista no art. 66 do Código de Defesa do Consumidor.
Por outro lado, no que diz respeito à segunda questão, caso haja comprovação da veracidade das mencionadas “denúncias”, a narrativa utilizada como elemento de alavancagem do preço/valor do produto – de que se trata de algo artesanal, feito à mão, por artesãos com anos de experiência –, por não corresponder à realidade em que ele é produzido/fabricado, parece adequar-se, pelo menos em tese, à elementar “enganosa” ou mesmo à elementar “omissão de informação relevante sobre a natureza ou qualidade do produto”, essas também previstas no art. 66 do Código de Defesa do Consumidor, o qual assim dispõe:
> Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:
Pena – Detenção de três meses a um ano e multa.
Interessante destacar que o §1º do dispositivo mencionado estabelece, ainda, que “incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta”.
Não se pode perder de perspectiva que o delito do art. 66 do Código de Defesa do Consumidor, a representar uma exceção aos crimes dolosos no âmbito do Direito Penal Econômico, pune também o comportamento culposo, ainda que com penas menores. 7
De se advertir, também, que o art. 75 do CDC é categórico ao estabelecer que “quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas”.
Por fim, há se levar em conta que as penas previstas para o crime podem ser agravadas nos casos de “serem cometidos em época de grave crise econômica”, “ocasionarem grave dano individual ou coletivo”, “dissimular-se a natureza ilícita do procedimento” ou, ainda, “quando cometidos: a) por servidor público, ou por pessoa cuja condição econômico-social seja manifestamente superior à da vítima; b) em detrimento de operário ou rurícola; de menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou de pessoas portadoras de deficiência mental interditadas ou não”.
A despeito dessas grandes polêmicas, é imprescindível que a reputação de grandes empresas seja preservada até que haja, de fato e direito, provas inequívocas das afirmações veiculadas nas grandes mídias, sob pena de se conspurcar, sumária e levianamente, com anos de história e tradição de grandes marcas que há tempos representam o cobiçado mercado do luxo.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista com atuação em Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, na Espanha, mestre em Direito Penal Econômico pela Universidade Internacional de La Rioja, na Espanha, e mestre em Direito Penal Econômico e da Empresa pela Universidade Carlos III de Madri, na Espanha, além de especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e autor de livros e artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.
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Referências citadas:
[1] O TikTok está desmontando omito do luxo artesanal. Disponível em: https://thenews.waffle.com.br/mundo/o-tiktok-esta-desmontando-o-mito-do-luxo-artesanal
[2] Bolsas de luxo da China?Entenda a polêmica sobre a origem das peças. Disponível em: https://stealthelook.com.br/bolsas-de-luxo-da-china-entenda-a-polemica-sobre-a-origem-das-pecas/
[3] Bolsas de luxo da China?Entenda a polêmica sobre a origem das peças.https://stealthelook.com.br/bolsas-de-luxo-da-china-entenda-a-polemica-sobre-a-origem-das-pecas/
[4] Bolsas de luxo da China?Entenda a polêmica sobre a origem das peças.https://stealthelook.com.br/bolsas-de-luxo-da-china-entenda-a-polemica-sobre-a-origem-das-pecas/
[5] Guerra comercial no TikTok: o que sabemos sobrevídeos chineses que ‘desmascaram’ grifes de luxo. Disponível em:https://exame.com/pop/guerra-comercial-no-tiktok-o-que-sabemos-sobre-videos-chineses-que-desmascaram-grifes-de-luxo/
[6]Artesanato por trás da Hermès: um olhar por dentro das técnicas artesanaishttps://www.watchesworld.com/craftsmanship-behind-hermes-an-inside-look-at-artisan-techniques/
[7] § 2º Se o crime é culposo;Pena Detenção de um a seis meses ou multa.
FONTE : ReporterMT