Durante essa semana estive em Santos —cidade que é a minha casa— para uma série de compromissos de gravação de um documentário sobre mim, obra essa que vem sendo filmada desde fevereiro do ano passado. Nessa etapa fundamental de filmagens, pude voltar às raízes, encontrar pessoas queridas e passar por lugares que fazem parte de minha memória.
Um desses encontros vou contar um pouco para vocês aqui. Enquanto começo as linhas desta coluna, estou em meio a um sentimento de gratidão por ter sido recebida por Mestre Sombra, que comemora 50 anos de atuação à frente da Associação de Capoeira Senzala de Santos.
A associação é um espaço que promove a ancestralidade afrobrasileira, a cultura santista e a educação por meio da roda de capoeira todas as segundas, quartas e sextas na rua Braz Cubas, no centro da cidade. Foi ali que o vi, tão bem e feliz, com 84 anos, tocando berimbau, entoando as cantigas de tempos imemoriais do nosso povo e jogando capoeira.
Encontrá-lo foi voltar no tempo e lembrar dele na cozinha de casa, conversando com meu pai e minha mãe sobre as coisas da estiva. Tanto Mestre Sombra, quanto meu pai, Joaquim, foram trabalhadores orgulhosos de serem negros e, assim como minha mãe, Erani, participavam de ações em prol da comunidade negra da Baixada.
Na estiva, Mestre Sombra trabalhava com meu pai “carregando saca de açúcar nas costas” e, junto a ele, mobilizava Quincas —que também se chamava Joaquim— e outros companheiros na política do sindicato dos estivadores. Meu pai era oito anos mais jovem que ele, mas entrou na estiva antes. Mestre Sombra era uma espécie de irmão mais velho que se encantava pela erudição política do Joaquinzinho.
Já na associação, foi mestre de capoeira de milhares de pessoas, incluindo meus dois irmãos, Dênis e Hélder. Ao longo dos anos, marcou seu nome no hall de lendários mestres de capoeira no Brasil, sendo reconhecido no país e internacionalmente. Segue viajando a promover essa luta que ora é dança, ou essa dança que ora é luta.
Sua associação, já na minha infância —e lá se vão quase 40 anos— era um lugar de acolhimento do movimento negro santista. Minha mãe ensaiava para o Balé Afro com suas companheiras ali e, anos depois, foi nesse espaço que foram sediados diversos encontros do Coletivo de Mulheres Negras, embrião do que se tornou a Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos.
Então, enquanto eu pisava no solo de tantas rodas e olhava os escritos naquelas paredes sagradas da Senzala, um filme rodava na minha cabeça. Mestre Sombra me aguardava quando cheguei e pude abraçá-lo com toda a emoção que transbordava. Havia mais de uma década que não nos víamos e fiquei feliz em vê-lo forte como um touro, com um sorriso doce e entusiasmo pela capoeira. Entregues ao momento, nos emocionamos.
E eu sei que, para ele, um outro filme rodava em sua cabeça. Nele, Mestre Sombra via em mim seus velhos amigos Joaquim e Erani. Vou escrever sobre essa noite no meu próximo livro, falando dos sentidos das lágrimas que escorreram por nossos rostos. As cenas desse filme voltavam ao início do século, quando meu pai Joaquim ficou em debilitado muito rápido, após o diagnóstico de um tumor agressivo. Sombra, seu amigo, não foi visitá-lo no hospital, pois não queria vê-lo assim.
Sensibilizado pelas memórias desses meses tão duros para nós, o Mestre lamentou um arrependimento por não ter ido ao hospital —e pude tranquilizá-lo, pois eu estava lá todos os dias e sabia que meu pai também não queria que Sombra fosse visitá-lo. Meu pai sequer permitia que eu dissesse para as pessoas que ele estava doente e receber uma visita de um irmão como ele naquele estado não era sua vontade. De alguma forma, penso eu, mesmo sem redes sociais, eles se entenderam de forma telepática e se despediram do jeito deles.
Juntos, nessa semana, encontramos a redenção. Em razão dos 50 anos da Senzala, seus alunos e alunas, em conjunto com a Prefeitura de Santos e a secretaria de Cultura da cidade, estão promovendo uma série de eventos que acontecerão entre entre 27 de julho e 3 de agosto. Estão programadas uma série de atividades, como rodas de capoeira, encontros para reflexões e celebração do imenso legado de Mestre Sombra. Virão mestres de todo o Brasil para prestigiar esse grande momento.
Trata-se da celebração do ano na cidade de Santos: os festejos em vida de um ancestral que marcou seu nome na história do povo negro brasileiro. Farei o possível para comparecer e deixo, desde já, todas as felicitações e desejos de que seja uma linda semana de cultura e festa. Viva Mestre Sombra!
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noticia por : UOL