Há quase 10 anos o STF (Supremo Tribunal Federal) bateu o martelo sobre a possibilidade de se escrever e filmar as vidas dos nossos artistas. Na época vários grandes nomes da MPB lutavam contra os biógrafos, querendo controlar o que poderia ser dito sobre suas trajetórias. Através da decisão do STF, ficou sacramentado que qualquer um pode contar a história de uma figura pública, desde que lastreado em verdades e fatos.
Naquela época ficou parecendo que necessariamente todo livro ou filme autorizado é ruim e toda obra independente é boa. Mas nem sempre é assim. O recente filme biográfico sobre o cantor Ney Matogrosso é exemplo de obra que, mesmo autorizada pelo homenageado, ainda assim se mostra esteticamente interessante.
Contar uma vida em duas horas é tarefa quase impossível. Mas “Homem Com H” se sai bem em apostar na ousadia libertária do cantor, que desde a infância na tradicional Campo Grande (MS) já dava sinais de ser um espírito livre.
A vida de Ney é mostrada de forma muitíssimo inspirada pelo diretor Esmir Filho e um exuberante Jesuíta Barbosa na pele do cantor multifacetado.
Chama a atenção a utilização de canções marcantes de Ney, sempre bem costuradas ao roteiro. Cenas de rara beleza, takes inteligentes, enquadramentos instigantes, além da cenografia e fotografia bem feitas, levam o filme de roteiro um tanto linear, que vai da infância à velhice, a um grande prazer sensorial e estético.
Muito acima do recente “Meu Nome É Gal”, sobre a baiana Gal Costa, “Homem Com H” encontra-se bem próximo aos melhores do gênero. Está ao lado dos filmes de Breno Silveira (“2 Filhos de Francisco” e “Gonzaga: de Pai para Filho”) e “Cazuza: O Tempo Não Pára”, de Sandra Werneck e Walter Carvalho.
O pecado (perdoável) de “Homem Com H” é não ter uma conclusão mais objetiva. O final se esfarela numa homenagem um tanto pueril. Não precisava ser assim, visto que o esmero e dedicação visíveis na película já eram uma homenagem em si. O término do filme com uma performance do próprio cantor e a dedicatória explícita empobrecem a obra ao romper com a boa narrativa contada até então, que pulava anos sem dar sobressaltos no espectador.
Ao não ter um final mais condizente com o espírito revolucionário de Ney, o filme acaba se tornando uma hagiografia do cantor. Não que ele não mereça. Mas um olhar mais independente sobre Ney Matogrosso se interessaria também pelas tensões existentes entre diferentes gerações de artistas LGBT+ com a qual Ney conviveu.
Em 2017 o cantor Johnny Hooker se mostrou incomodado com o fato de Ney recusar rótulos numa entrevista à Folha: “Me enquadrar como ‘o gay’ seria muito confortável para o sistema”, disse Ney à época. E continuou: “Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu faço com a minha sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto, de terceiro lugar.”
Indignado, Hooker elevou o tom: “É inconcebível ler a frase ‘Que gay o caralho’ […] vinda de um artista cuja carreira em grande parcela se apoiou na bandeira da luta dessa comunidade, de seu próprio público. Um artista genial que perdeu o andar que o mundo tomou, ficou cristalizado, um cânone. O que um dia foi uma das maiores forças libertárias do país hoje se reduz a reproduzir o senso comum.”
Ao fugir de polêmicas desse tipo, o filme “Homem Com H” busca valorizar o espírito libertário de Ney de forma simples. As polêmicas dentro do movimento LGBT+ são evitadas e os adversários são apenas os reacionários de sempre. Dava para ir além da louvação ao libertarismo e cutucar mais as sensibilidades atuais. Esse é o limite de “Homem Com H”. Como todo filme autorizadíssimo, quer mais homenagear do que polemizar. Mesmo assim, “Homem Com H” encanta.
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noticia por : UOL