6 de junho de 2025 - 11:31

A ciência vista do térreo

Uma das metáforas que menos me agradam sobre a ciência acadêmica é chamá-la de torre de marfim. Primeiro, porque ela não merece, já que frequentemente está mais para um castelo de cartas. Segundo, porque isso costuma embasar um argumento do tipo “os cientistas têm que descer da sua torre para interagir com a sociedade”.

Nada contra o argumento, mas ele tende a enfatizar o subtexto de que cientistas vivem acima do cidadão médio e têm de descer para disseminar sua sabedoria. Soberba à parte, mesmo que eles fossem esses seres iluminados (spoiler: não são), descer não seria necessário: basta botar uns bons alto-falantes na torre, contratar alguém bom em comunicação e o sujeito poderia ficar por lá.

Dito isso, existem boas razões para descer. Há nove anos, eu encarei o desafio ao ser convidado para escrever um livro sobre ciência, medicina e mercado. E em vez de usar minha sabedoria acadêmica para isso (spoiler: não a tenho), resolvi sair da torre vestido de jornalista e olhar o mundo acadêmico a partir do térreo.

Foi quase uma década de perambulações presenciais e virtuais entrevistando bigodes gigantes, pacientes psiquiátricos, startupeiros da saúde e aviadores antivacinas. Me infiltrei em campanhas de rastreamento de câncer de próstata, eventos da luta antimanicomial, palestras sobre imortalidade e grupos de médicos bolsonaristas. Fui tratado por chatbots, tive meus dados genéticos hackeados e vendidos e acabei chamado de assassino financiado por banqueiros.

Essas e outras histórias estão em “Na Saúde e na Doença“, que acaba de sair pela Objetiva. Minha mulher definiu o livro como “auto-não-ficção”, como se eu fosse um Karl Ove Knausgård da ciência. Fiquei nas nuvens, mas ela é casada comigo, então você deveria ler antes de levar a sério (spoiler: acho que não é). Numa descrição mais sóbria, o livro reúne quatro ensaios sobre temas em que a ciência médica interage com a sociedade, a política e o mercado para chegar ao mundo real bem diferente de como saiu da academia.

Mais do que isso eu não deveria falar, porque estragaria a leitura – e essa é uma coluna de ciência e não de literatura. Então queria usá-la para falar do que levo da experiência de descer da torre.

Antes de mais nada, você não precisa descer. O mundo lá fora é uma trincheira cheia de conflitos, paixões, xingamentos e situações em que defender uma postura racional é impossível. Então, se você não está a fim, sinta-se à vontade pra ficar trabalhando no seu canto – aliás, desconfio que isso faz mais falta pro mundo do que gente gritando pro público.

Mas, se descer, desça para escutar, que é um motivo mais interessante do que espalhar conhecimento. Ser jornalista me forçou a ouvir gente que eu jamais levaria a sério em outros contextos – e sem poder interromper pra não estragar as aspas. E às vezes você descobre que a conversa não foi tão ruim.

Por fim, saiba que descer vai afetá-lo. Quanto mais você falar de um tema e quanto maior for o público, mais difícil vai ser mudar de opinião, sobretudo em tempos de redes sociais – o que o torna menos isento pra pensar no assunto. Isso não significa que você não deva falar, mas é bom lembrar que os chapéus de ativista e cientista entram em conflito o tempo todo. Paradoxalmente, “defender a ciência” envolve deixá-la para trás e entrar no debate público com mentalidade de soldado – e, uma vez na trincheira, é difícil recuar.

Não por acaso, um tema recorrente do livro é o quanto a academia é permeável ao mundo externo. Poucas situações escancaram isso como a pandemia de covid-19, em que a polarização extrema de determinados temas acabou por invadir a medicina e gerar ciências paralelas, cada qual com seu corpo de evidências. E pra quem olha de fora, pode ser difícil saber qual delas seguir, particularmente quando os diletantes viram o jogo e invadem as instituições.

E talvez meu grande aprendizado ao descer da torre seja constatar que ela nunca existiu. No fundo, todos estamos no térreo: o mundo, com seus vieses e controvérsias, invade os quartos dos cientistas pelo celular antes mesmo que eles abram as janelas. Não surpreende, assim, que nossas visões possam acabar tão – ou mais – enviesadas pelo ruído quanto as do cidadão médio.

Com isso, o verdadeiro desafio não é descer da torre, mas tentar subir um pouco acima do chão para encontrar um canto mais quieto (spoiler: vai ser só um pouco). Infelizmente, um doutorado não vai ajudar nisso. Um cargo de professor talvez sim – mas só porque um emprego estável diminui as chances de precisar de patrocínio. Mas escapar do ruído do mundo é acima de tudo um esforço diário, ativo e solitário. De construir não uma torre, mas um banquinho que seja, e tentar pensar de modo um pouco mais isento.

*

Olavo Amaral é professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ e acaba de lançar o livro “Na Saúde e na Doença” pela editora Objetiva.


O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Os textos de opinião publicados no blog não refletem necessariamente a opinião do instituto.


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noticia por : UOL

6 de junho de 2025 - 11:31

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