Para o nosso dia a dia, existem certamente leis mais importantes que outras. Dentre elas, o Código Civil brasileiro é inegavelmente uma das mais essenciais para a vida de qualquer brasileiro: tudo, desde o nascimento até a morte de uma pessoa, passando pela vida profissional e empresarial, casamento e relações familiares está lá. Para além disso, mesmo outros assuntos não diretamente referidos no Código são afetados por ele, pois é na vida civil (a vida “comum” das pessoas) que o direito tributário, o direito penal, o direito do consumidor, o direito de trânsito, o direito ambiental e muitos outros encontram diversos conceitos necessários para sua aplicação.
Tamanha é a importância de um projeto de “código” que existe um procedimento específico para isso: não é possível que mais de um projeto desse tipo tramite ao mesmo tempo no Legislativo; cada parte do projeto precisa ser analisado por uma comissão temática específica, cujos trabalhos posteriormente precisam ser reunidos e analisados por outra comissão; não pode ser votado em regime de urgência, entre outros. Não se trata de mera burocracia, mas de garantias para evitar desastres decorrentes de regras mal escritas, dúbias, anacrônicas ou mesmo oportunistas.
Sancionado em 2002, o Código Civil atual resultou de discussões iniciadas no Congresso Nacional em 1975 a partir do anteprojeto de uma comissão cujos trabalhos ocorreram de 1969 a 1975. Em razão desse longo tempo de tramitação, partes do texto realmente estão desatualizados: por exemplo, as regras de convivência em condomínios urbanos foram escritas numa época em que a maior parte da população brasileira vivia na zona rural, não existindo os atuais complexos de apartamentos que chegam a ter mais moradores que pequenos municípios. Isso explica muitos dos problemas de quem vive hoje num prédio.
Embora o código atual esteja sempre recebendo atualizações pontuais, no início deste ano algo radical aconteceu: em 31 de janeiro foi protocolado no Senado o PL 04/2025, cuja ementa informa que pretende “atualizar” o Código Civil atual. Isso não é verdade: resultado de uma comissão de juristas que trabalhou por 18 meses, o projeto é, na prática, um novo Código Civil. Alterando 54% dos 2.046 artigos, ele mexe nas questões mais estruturais para a vida do brasileiro. Para piorar, textos ambíguos podem retroceder avanços sociais importantes, potencialmente afetando direitos já conquistados, como liberdade de expressão e de imprensa, e criando um “direito ao esquecimento”, já considerado incompatível com a Constituição pelo Supremo Tribunal Federal por constituir censura e violação ao acesso à informação.
Feito “a toque de caixa”, a produção do anteprojeto ocorreu com pouquíssimas audiências públicas. Mesmo naquelas realizadas, apenas há registro de atas em algumas delas. Em tempos onde se exige políticas públicas com base em evidências, a fundamentação do projeto não se dá sequer ao trabalho de explicar mudanças artigo por artigo, quem dirá apresentar estatísticas, estudos e notas técnicas ou análises de impacto. Os princípios da transparência e publicidade mandaram lembranças. Com todos esses problemas, não é à toa que especialistas defendem seu arquivamento.
O problema, porém, é mais profundo: alguns senadores aparentemente querem aprová-lo rapidamente para que se torne lei o quanto antes. Assim não dá. Não podemos permitir que uma decisão tão importante e impactante seja tomada de forma açodada e irresponsável, sem preocupação com os efeitos inevitavelmente negativos que o texto proposto irá acarretar.
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noticia por : UOL