Descrita pelo New York Times como “a principal estudiosa ocidental sobre a KGB”, a historiadora americana Amy Knight conduz o leitor pelos bastidores sombrios do poder russo em “Putin e os Oligarcas: A Armadilha do Kremlin” (editora LVM).
Em ritmo de thriller político, ela narra como Vladimir Putin ascendeu ao topo do Estado russo com a ajuda de figuras centrais da elite do país — e, uma vez consolidado como líder, voltou-se contra muitas delas.
No trecho a seguir, a autora resgata, de forma resumida, a relação entre o ditador e um desses aliados que se tornaram inimigos: Boris Berezovsky, encontrado morto em 2013, sob circunstâncias suspeitas. Também traça paralelos inquietantes entre Putin e Stálin — dois líderes moldados por sistemas autoritários que recorreram à repressão, à propaganda e à eliminação de inimigos reais ou imaginários para se manter o poder.
Esta é a história de dois russos que forjaram uma relação nos primeiros anos da era Yeltsin, a qual acabaria por se tornar uma amarga querela disputada em meio a negócios bilionários, contendas no Kremlin e lances de política internacional.
Um deles, o oligarca Boris Berezovsky (1946-2013), está morto há mais de uma década. O outro, o presidente russo Vladimir Putin, está bem vivo e, em fevereiro de 2022, iniciou uma devastadora campanha militar na Ucrânia que destruiu grande parte desse país, matou milhares de ucranianos e forçou o deslocamento de milhões de outros.
Putin também transformou seu próprio país em uma fortaleza fechada, onde as liberdades democráticas e o Estado de Direito, que começaram a se desenvolver durante a presidência de Boris Yeltsin (1956-2007), deixaram de existir.
Apelidado de “padrinho do Kremlin” pelo jornalista norte-americano assassinado Paul Klebnikov (1963-2004), Berezovsky, um matemático que se tornou empresário de sucesso e magnata da mídia, desempenhou um papel desproporcional na Rússia após 1991.
Com um patrimônio declarado de três bilhões de dólares em 1997, ele se saiu vencedor, entre os oligarcas emergentes, na notória disputa pelos despojos do antigo Estado soviético; além disso, engendrou a reeleição de Yeltsin para presidente em 1996 e negociou com sucesso o fim da guerra na Chechênia de 1995 a 1996.
Ainda mais importante: Berezovsky foi crucial na ascensão de Putin à presidência da Rússia em março de 2000.
Fuga e asilo político
No momento em que Berezovsky disse seu último adeus a Putin em uma reunião privada no Kremlin em agosto de 2000, ele já estava arrependido de ter dado seu apoio ao líder russo. Putin já havia começado a desmantelar as reformas que Yeltsin introduzira e havia promovido investigações criminais contra alguns dos principais empresários da Rússia, incluindo Berezovsky.
Enfrentando possível acusação e prisão, Berezovsky fugiu da Rússia em outubro de 2000 e mais tarde obteve asilo na Grã-Bretanha, onde se dedicou — devotando inclusive sua fortuna — a promover uma campanha de grande divulgação contra o regime de Putin.
Logo depois de Berezovsky deixar seu país para sempre, o comentarista político russo Andrei Piontkovsky observou: “A relação entre Putin e Berezovsky está começando a se assemelhar à de Stalin (1878-1953) e Trotsky (1879-1940). Este caso corre o risco de terminar com Berezovsky levando um tiro na cabeça”.
Exilado no México, Leon Trotsky, um ex-líder bolchevique que entrou em conflito com Stalin, foi assassinado por ordens do Kremlin, em 1940, após anos de exposição dos crimes de Stalin. Seu assassinato foi um aviso claro do destino que aguardava aqueles que se opunham ao ditador soviético onde quer que procurassem refúgio.
Mais de sete décadas depois, em março de 2013, Berezovsky foi encontrado morto, um lenço amarrado em volta do pescoço, no chão do banheiro da mansão de sua ex-mulher, nos arredores de Londres. Quanto à morte de Berezovsky ter sido um suicídio por enforcamento, como alguns — incluindo o Kremlin — afirmam, ou assassinato, como insistem sua família e amigos próximos, permanece o mistério.
O legista britânico informou que a causa da morte era indeterminada. Contudo, uma coisa é certa: aos olhos de Putin, Berezovsky era um traidor. Ele acusara Putin de crimes desprezíveis.
O fato de Putin dever favores a Berezovsky por ajudá-lo a conquistar a presidência russa o tornava ainda mais desleal aos olhos do líder do Kremlin. E Putin havia deixado muito claro ser da opinião de que os traidores merecem a morte.
Putin assemelha-se a Stalin em sua capacidade de vingança. Embora sua imagem pública seja a de um líder que mantém suas emoções sob controle, é bem conhecido o fato de que Putin nutre profundos ressentimentos contra aqueles que o desafiaram de alguma forma.
Talvez esse traço, como alguns sugeriram, resulte da experiência de infância de Putin, um garoto de compleição pequena que teve de se defender dos valentões nas ruas das vizinhanças empobrecidas de Leningrado. Ou, talvez, esteja relacionado à sua carreira na KGB, onde a menor expressão de oposição ao dogma comunista era considerada uma ameaça.
Seja qual for o motivo, Putin revelou sua sede de vingança de forma clara e consistente em comentários como o que fez sobre os chechenos no outono de 1999, quando prometeu “liquidar os bandidos na privada”. Putin cumpriu sua palavra, lançando uma brutal guerra militar na Chechênia, que destruiu a capital, Grósnia, e causou a morte de centenas de milhares de chechenos inocentes.
Ordens para matar
Muitos assassinatos, ou tentativas de assassinato, de opositores políticos de Putin têm sido abertamente atribuídos ao Kremlin.
Depois que relatei vários desses casos em meu livro de 2017, Orders to Kill: The Putin Regime and Political Murder (“Ordens para Matar: o Regime de Putin e o Assassinato Político”), mais alvos e vítimas foram adicionados à lista.
O desertor da GRU (inteligência militar) Sergei Skripal e sua filha Lulia foram envenenados na Grã-Bretanha com o agente nervoso Novichok em março de 2018; Nikolai Glushkov (1949-2018), ex-sócio de Berezovsky, foi estrangulado em sua casa em Londres poucos dias após o ataque a Skripal; e em agosto de 2020, o político de oposição mais proeminente da Rússia, Aleksei Navalny (1976-2024), foi envenenado com Novichok durante uma visita à cidade siberiana de Tomsk, um ataque do qual ele mal sobreviveu.
O próprio Berezovsky recebeu inúmeras ameaças de morte durante seus quase 12 anos de exílio na Grã-Bretanha. Em uma das ocasiões, a polícia britânica prendeu um agressor em potencial russo com uma arma no prédio de escritórios de Berezovsky, em Londres, e, provavelmente, para evitar uma disputa diplomática com Moscou, as autoridades britânicas simplesmente optaram por enviá-lo de volta à Rússia.
O contínuo bombardeio de exigências do Kremlin para que Berezovsky fosse extraditado da Grã-Bretanha sob acusações criminais falsas, embora recusadas pelas autoridades britânicas, aumentou a percepção de que ele estava sitiado. Em 2012, após perder um caso legal, altamente divulgado na Alta Corte de Londres, contra Roman Abramovich, um oligarca próximo a Putin, parecia que Berezovsky estava derrotado.
Supostamente, até escreveu a Putin pedindo desculpas e dizendo que queria retornar à Rússia. Seria isso o suficiente para acalmar a sede de vingança do presidente russo? Ou, como Stalin com Trotsky, Putin precisava de uma solução mais definitiva para o problema Berezovsky?
Marina Litvinenko, esposa de Alexander Litvinenko (1962-2006), ex-oficial do FSB [o Serviço Federal de Segurança da Rússia] que foi assassinado com uma dose de veneno radioativo, certa vez me disse que “com Putin, tudo é levado ao nível pessoal”.
Isso explica em grande parte o motivo de Putin ter insistido na vingança contra Berezovsky e outros oponentes políticos, mesmo depois de estar seguro no poder no Kremlin. Berezovsky, arrogante e imprudente, também foi motivado por razões pessoais em sua campanha autodestrutiva, promovida a partir de Londres, para orquestrar a queda de Putin.
Erro crucial
Mas a história dessa disputa vai além de um choque de personalidades. Faz parte de um contexto maior, de como a Rússia caiu de uma democracia incipiente após o colapso soviético para o que hoje é a ditadura de um único homem de Vladimir Putin. Nem Berezovsky nem outros que usaram sua vasta riqueza para promover a liderança de Putin e depois se tornaram suas vítimas foram heróis.
Não apenas cometeram o erro crucial de subestimar Putin, mas prepararam o terreno para o inevitável fim da democracia russa. A “operação sucessor”, realizada pelo círculo interno de Yeltsin para elevar Putin, então chefe do FSB, à presidência foi em grande parte um negócio faustiano cínico, feito para proteger a família de Yeltsin e seus associados próximos de investigações de corrupção.
O grupo, incluindo Berezovsky, pensava que seria capaz de controlar Putin depois que ele substituísse Yeltsin, e de manter a Rússia em um caminho democrático. Estavam terrivelmente enganados.
Ao contrário dos muitos oligarcas russos que escolheram ignorar a transformação de Putin em um autocrata sem respeito pela lei e lhe deram seu apoio inquestionável, Berezovsky fez tentativas determinadas, no exílio, para revelar os perigos do regime de Putin tanto para seus compatriotas quanto para o Ocidente. Suas advertências foram amplamente ignoradas.
Putin manteve uma população leal, revertendo o declínio econômico da Rússia e alistando a mídia controlada pelo Estado para promover o culto à sua liderança. Com relação aos líderes ocidentais, estes foram incrivelmente lentos em reconhecer que Putin estava longe de ser o democrata que afirmava ser.
Em uma crítica feita a Patriots, uma recente peça de teatro londrina sobre Berezovsky e Putin, seu antigo assistente Alex Goldfarb deixou claro: “Aqueles entre nós que, como Boris, assistiram da relativa segurança de Londres a maneira como Putin transformou a Weimar russa livre de Yeltsin em um Estado policial, ainda não conseguem entender como um exército de legisladores ocidentais pôde ignorar esses sinais iniciais”.
noticia por : Gazeta do Povo