12 de maio de 2025 - 9:54

Entramos de penetra no aniversário de Marx na livraria mais comunista de Curitiba

Na sobreloja de uma padaria, funciona a livraria curitibana Vertov. O espaço, inaugurado em 2010, busca se distanciar do padrão das megastores apostando numa curadoria centrada em artes, ciências humanas e, de uns anos para cá, literatura “étnico-racial”.

A definição é de uma das sócias, Socorro Araújo. Fotógrafa aposentada do Estado e mestre em Antropologia da Alimentação, ela calcula que cerca de 60% dos autores vendidos ali são negros, latinos e indígenas.

O feminismo também aparece com expressividade no acervo da Vertov, frequentada principalmente por mulheres, segundo Socorro. “Sinto que elas veem aqui um espaço seguro — político, social e biologicamente”, disse à revista Pinó.

A seleção de obras para crianças é outra singularidade da casa. Ou melhor, do apartamento (num prédio em estilo déco, localizado na região central da cidade). 

Apesar de limitado a uma única estante, o segmento infantil é representado por títulos nem sempre encontrados nas grandes redes livreiras, como “Princesas em Greve!” e “Cadê a Perna do Pererê? — Sim, Nossa Mitologia Tem Pretos e PCD!”.

Mas a temática essencial da loja não passa pelas questões identitárias e de gênero, ainda que as paredes sejam decoradas com pôsteres feministas, memes da esquerda e até a famosa placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco (1979-2018).

O mote do espaço é uma nostalgia assumida em relação à Revolução Russa, ao comunismo e à extinta União Soviética. A começar pelo nome, uma referência ao cineasta Dziga Vertov (1896-1954), umas das figuras fundamentais na construção do imaginário comunista. 

Logo na entrada, os clientes se deparam com um manequim vestido com uma farda feminina do exército soviético. E, em todos os cantos, há quadros, canecas, chapéus e outros objetos que retratam heróis da URSS. 

A Vertov também é conhecida por organizar e sediar debates, palestras e lançamentos ligados a esse universo. Como o evento ocorrido na noite da última segunda-feira (5), dia do aniversário de 207 anos do nascimento do ícone máximo da esquerda: Karl Marx (1818-1883). 

Nova ordem “multipolar”

Todos os anos, na mesma época, a livraria ainda celebra o “Dia da Vitória na Grande Guerra Patriótica” — como os russos chamam a data da rendição dos nazistas. Assinado na França em 8 de maio de 1945, o ato só entrou em vigor na União Soviética no dia seguinte, devido ao fuso horário de Moscou (e, por isso, as comemorações por lá acontecem em 9 de maio). 

Desta vez, a Vertov preparou uma semana inteira de programação para marcar as duas efemérides. A reportagem da Gazeta do Povo acompanhou a mesa de abertura, que teve como tema “Geopolítica e economia mundial, implicações para o Brasil e os Brics e a atualidade do pensamento de Karl Marx”. 

O público, de cerca de 20 pessoas, era formado basicamente por professores universitários e militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — alguns dos presentes acumulavam os dois perfis. Já o trio de convidados contou com o cônsul honorário da Rússia no Paraná e dois pesquisadores acadêmicos. 

Acef Said, representante oficial da Federação Russa no estado, foi o primeiro a falar. Em linhas gerais, ele defendeu a emergência de uma nova ordem mundial “multipolar” e a necessidade de fazer frente à hegemonia ocidental (especialmente a dos Estados Unidos). 

Sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, um dos assuntos da semana na Vertov, o cônsul foi categórico: “Quem realmente derrubou a Alemanha nazista foi a União Soviética, ao custo de milhões de russos mortos”.

Segundo ele, os EUA disseminaram, por meio do cinema e da mídia, a ideia de que foram os “salvadores” dos europeus e “grandes vencedores” da Segunda Guerra Mundial. Mas entraram no conflito quando a Europa já estava destruída, fornecendo material bélico e sem sofrer bombardeios em seu território.

“Já entraram com a guerra ganha”, completou Socorro, dona da livraria (que não participava da mesa, porém deu sua opinião).

Vale lembrar que a URSS foi aliada de primeira hora da Alemanha, inclusive assinando um pacto de não-agressão com os nazistas e dividindo regiões de influência na Polônia e nos Balcãs. Os Estados Unidos, por sua vez, ingressaram oficialmente na guerra no final de 1941 e sofreram mais de 407 mil baixas ao longo do conflito.

Ucânia “manipulada” pela Otan

Said ainda criticou a política externa dos americanos. “Quantas guerras a China ou a Rússia processaram nos últimos 50 anos? Nenhuma. Mas quantos conflitos os Estados Unidos perpetraram, defendendo que o mundo tem de ser livre, de que isso é democracia? As pessoas falam que Stalin foi um assassino, um ditador. Mas quantas guerras ele começou?”

No entanto, embora se afirme que Josef Stalin não começou nenhuma guerra formal, o ditador comandou diversas campanhas militares agressivas —  como a invasão da parte oriental da Polônia (1939), a Guerra de Inverno contra a Finlândia (1939), a ocupação dos Estados Bálticos (1940) e conflitos de fronteira contra o Japão em Khalkhin Gol (1939), além da anexação da Bessarábia (1940).

Internamente, Stalin também organizou o Holodomor (período de fome, entre 1932 e 1933, ordenado pelo líder comunista, que matou milhões de ucranianos) e deixou incontáveis prisioneiros morrerem em campos de trabalhos forçados.

Por fim, o cônsul tocou num tema inevitável: a guerra na Ucrânia. Ele afirmou que o país está sendo usado e manipulado pela Otan — a verdadeira perdedora do embate. E conectou o cenário atual com a ameaça nazifascista na Segunda Guerra Mundial.

“Tudo isso que nós vemos hoje tem um passado complexo e não muito distante. Nós [a Rússia] combatemos com muita veemência o pensamento nazista, que estava voltando [na Ucrânia].”

Essa associação, contudo, já foi refutada por agências de inteligência e especialistas em política internacional, que consideram a narrativa russa de “desnazificação” da Ucrânia apenas uma justificativa para invadir o país.

Farda feminina na entrada da Vertov: temática centrada na nostalgia da extinta URSS.Farda feminina na entrada da Vertov: temática centrada na nostalgia da extinta URSS. (Foto: Omar Godoy/Gazeta do Povo)

“Expropriação dos expropriadores” 

O filósofo Euclides Mance falou em seguida. Ele é considerado um dos principais teóricos da chamada economia solidária, voltada para a organização “autogerida e democrática” dos trabalhadores. 

Mance também tem forte atuação no movimento conhecido como Filosofia da Libertação, que busca pensar em ações concretas para “emancipar os povos oprimidos da América Latina” e “superar as dinâmicas de dominação eurocêntricas”. 

O acadêmico centrou seu discurso na ideia, de bases marxistas, de que a transição do capitalismo para o socialismo pode ocorrer a partir das “mesmas leis imanentes da concorrência capitalista”. 

E deu o exemplo da China, cujas grandes empresas investem pesado em tecnologia e têm como resultado uma redução significativa dos custos de produção. Segundo ele, essas companhias acabam vendendo seus produtos abaixo do preço dos concorrentes americanos, porém acima do valor investido — realizando, assim, um “lucro suplementar”. 

Resumindo: o filósofo acredita que está em curso um processo de “expropriação dos expropriadores”, impulsionado pelos chineses e seu socialismo de mercado. 

Mance prosseguiu lembrando que os avanços tecnológicos reduzem a necessidade do “trabalho vivo” (criando o que Marx chamou de “tempo de trabalho disponível”). No entanto, de acordo com ele, se as novas tecnologias forem aplicadas num modo de produção socialista, esse tempo livre vai possibilitar “a humanização das pessoas”.

Proibido perturbar 

Geraldo Augusto Pinto, professor de Sociologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTPR), encerrou a noite. Ele apresentou uma análise sobre a ascensão econômica da China, com ênfase no papel crucial dos meios digitais. 

Em seu painel, o docente abordou desde a política de “reforma e abertura” chinesa (iniciada no final da década de 1970, após a morte de Mao Tsé-Tung) até dados econômicos atuais, com o país sob a presidência de Xi Jinping. E, como Euclides Mance, atribuiu o sucesso chinês ao investimento em inovação, pesquisa e desenvolvimento.

Também contextualizou a “Nova Rota da Seda”, definindo-a como um segundo momento da reforma chinesa, agora voltada para o exterior. De acordo com ele, além de criar corredores comerciais e de infraestrutura por vias terrestres e marítimas, o projeto tem como ponto fundamental a abertura de “rotas digitais” — para tornar as empresas chinesas líderes mundiais em regiões deficientes em conectividade.

No entanto, ao abordar as bases de sustentação do sistema chinês, Augusto Pinto introduziu um elemento que causou certo constrangimento na plateia militante. Primeiro, o acadêmico citou uma fonte que associa o baixo custo de produção no país “à presença de uma força de trabalho farta, barata e disciplinada”.

Em seguida, leu o primeiro parágrafo da Constituição da China, que define o país como “um estado socialista sob uma ditadura democrática popular”. E então destacou outra parte do texto, segundo ele, “bem interessante”: “É proibida a perturbação do sistema socialista por qualquer organização ou indivíduo”.

O professor bem que tentou frisar que não estava “ironizando de forma alguma”. Mas o estrago já estava feito. O trecho lido era um lembrete de que, por trás da escalada econômica meteórica da China, há uma estrutura totalitária e de vigilância rigorosa, capaz de impor obediência aos cidadãos, suprimir a liberdade de expressão e impedir qualquer modalidade de dissidência.

noticia por : Gazeta do Povo

12 de maio de 2025 - 9:54

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