Poucos traços de Francisco Cuoco, aos 91 anos, lembram os que fizeram dele um dos maiores galãs da televisão brasileira. Sentado no sofá do apartamento onde mora com a irmã, na zona sul de São Paulo, assiste à televisão na sala com o olhar perdido. Ganhou muito peso. As pernas, inchadas, com pés roxos, estão nuas sob um lençol fino.
O ator atende a reportagem a contragosto. Havia topado a entrevista no dia anterior, em telefonema mediado por um colega da família, mas não quis saber de papo na hora. Convencido pelo amigo, pediu que fosse rápido, e com lentidão descolou o tronco do sofá onde estava estirado. Ajeitou a sonda no nariz e soltou um muxoxo em cumprimento ao repórter.
“Tenho alguns problemas de saúde, de locomoção. Mas”, ele diz, antes de uma pausa demorada. “É suportável.” Cuoco diz ter infecção nos rins, ansiedade. Fica aflito com pouco e lida com as frustrações comendo. Hoje pesa cerca de 130 quilos —não dá para saber exatamente, porque ele não consegue subir em balanças. O ator não fica mais de pé sozinho, conta a irmã, Gracia Cuoco, de 86 anos, e toma banho apenas com a ajuda de seus cuidadores.
O ator sofreu uma piora no último ano. Em julho passado, recebeu a equipe da TV Globo em casa para gravar um depoimento ao programa Tributo, que homenageia grandes artistas da emissora —seu capítulo deve ir ao ar nas próximas semanas. À época, Cuoco estava menos debilitado, e seu rosto ainda lembrava o que conhecemos. Em respeito à sua decisão de ficar recluso, a Folha decidiu não fotografá-lo.
Cuoco leva a vida como pode. Vai muito ao hospital, carregado por enfermeiros, e fica de repouso quando está em casa. Diz gostar de ver TV —mas não novelas. “Assisto ao jornal, alguma matéria mais interessante. Mas perdi o interesse em novelas. Vejo filmes. Não sempre, são muito longos.”
Cuoco viu um pedaço de “Ainda Estou Aqui“, vencedor do Oscar de melhor filme internacional. “Algumas cenas eu não gostava, tem momentos tristes. Mas outros são interessantes, apontavam para uma coisa de política brabeira, de desastre”. O filme conta a história de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, que perdeu o marido para a ditadura militar nos anos 1970.
Torres, que concorreu ao Oscar de melhor atriz este ano, interpretou a filha do personagem de Cuoco no filme “Gêmeas”, quando ela tinha 34 anos, e ele, 66. “Cuoco é puro Nelson Rodrigues. A voz, o porte, o tamanho, a beleza. A humildade que beira o patético. Tudo isso faz dele irresistível”, diz ela.
Quando Cuoco fala de “Ainda Estou Aqui”, o repórter lembra da participação de Fernanda Montenegro como Eunice Paiva idosa. Os dois são da mesma geração —a atriz tem 95 anos, quatro a mais que Cuoco—, e trabalharam juntos em obras como o teleteatro “A Malvada”, exibida em 1961 na TV Tupi, e na novela “Passione”, da Globo, cinco décadas depois. “Você vê, tira o chapéu e toca o bonde. É vida que segue”, diz ele sobre a colega.
Cuoco é de uma leva de atores que ajudou a fundar a teledramaturgia brasileira. Surgiu mais ou menos junto de artistas como Tarcísio Meira, Glória Menezes e Regina Duarte, com quem fez par romântico em “Selva de Pedra”, de 1972, e em “Sétimo Sentido”, dez anos depois. “Lembro direitinho. É chocante, foram muitos encontros, muitos achados na teledramaturgia. Foi muito bom. Eu não sei o que seria da arte sem esses momentos preciosos”, afirma.
Montenegro lembra que seu primeiro encontro no palco com Cuoco foi em 1958, na peça “A Muito Curiosa História da Virtuosa Matrona de Éfeso”. “Que saudade da aurora da nossa vida. Ele é um ator absoluto. Um ser humano amado e querido”, diz, em texto enviado à reportagem.
Cuoco é ídolo também de Rodrigo Lombardi, 48, que chama o ator de “uma síntese de todos os grandes”. Lombardi refez um dos personagens mais emblemáticos do veterano, o ilusionista Herculano Quintanilha, da novela “O Astro”, lançada em 1977. O remake saiu em 2011. “Se botar os grandes atores no liquidificador, o elixir que goteja é Francisco Cuoco”, diz Lombardi.
Os dois contracenaram na segunda versão de “O Astro”, quando Cuoco, aos 77, foi chamado para fazer o mentor do ilusionista que décadas antes ele ajudou a criar. “Ele já tinha uma idade avançada, mas estava cheio de vivacidade. Quando a câmera fechou o primeiro close no rosto dele, pensei ‘meu Deus, esse homem é mesmo um negócio’”, lembra Lombardi.
Cuoco não se recorda de “O Astro”, mas fala com saudosismo dos tempos em que se considerava só um aprendiz. Passava dias a fio tendo de decorar texto, em paralelo à vida de feirante, no bairro do Brás, em São Paulo, onde o pai tinha uma barraca de biscoitos. À noite, estudava na Escola de Arte Dramática, quando a instituição ainda não era da Universidade de São Paulo. Não sabia no que aquilo ia dar, mas sentia que tinha vocação.
“A escola era maravilhosa, colaborou lindamente com vários aspectos da arte brasileira”, diz o ator, com o olhar perdido no passado.
Cuoco se formou, entrou no elenco do Teatro Brasileiro de Comédia, e depois no Teatro dos Sete, onde dividiu palcos com Montenegro. Em paralelo, foi à TV, com “Marcados Pelo Amor”, de 1964, na TV Record. Logo foi chamado de galã. Colou sua imagem no imaginário do público com “Redenção”, de 1966, da extinta TV Excelsior, que ficou dois anos e meio no ar, até hoje a mais longa da história.
Em 1970, se mudou para a Globo, onde virou pupilo de Janete Clair, dramaturga que levou ele a novelas icônicas, como “Selva de Pedra” e a própria “O Astro”. Foi ela, cujo centenário se celebrou em abril, quem presenteou Cuoco com o taxista Carlão, de “Pecado Capital”, personagem que ajudou a imortalizá-lo.
“Eu era especial. Tenho fotografia da época, e vejo que era um ‘galãzura’ mesmo”, diz. O repórter pergunta o que ele quis dizer. “Um ‘galãzura’”, Cuoco repete.
Ser bonito era parte do ofício. Cuoco foi considerado um dos homens mais charmosos da TV, dono de um vozeirão de arrepiar. Assim, virou uma espécie de herói nacional, diz o pesquisador Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo, admirador do ator desde criança. Décadas depois, viraram colegas por intermédio da irmã de Cuoco, com quem Alencar trabalhou em uma escola de inglês.
“Numa ocasião, Francisco estava no carro enquanto íamos a uma festa da escola. Me senti sendo guiado pelo Carlão”, diz o pesquisador. “À época vivíamos uma idolatria com atores de TV. Aquele era o nascimento da Hollywood brasileira, e ele foi um dos líderes dessa era. Havia um delírio coletivo.”
Dono de uma coleção de revistas e jornais sobre Cuoco, Alencar sabe tudo da vida dele. Quase foi seu biógrafo —faltou uma conversa ou outra para que o livro desse certo, diz ele. “Francisco representou os dilemas do homem moderno. Não interpretava heróis cheios de virtude, e também não fazia só o ‘bad guy’. Por isso tantos homens e mulheres se encantaram.”
Foi Alencar quem ligou para Cuoco para negociar a entrevista. Não via o ator desde julho, quando acompanhou as gravações do programa da Globo. Ao ver o amigo no sofá, agora tão diferente, sentiu, em suas palavras, como se vislumbrasse o crepúsculo de uma história que a acompanhou do início ao fim. Para Rodrigo Lombardi, a sensação é parecida. “Difícil acreditar que heróis padecem.”
Mas Francisco Cuoco diz estar tranquilo, com um orgulho danado de tudo o que já fez. “Sei que não foi à toa. Foi baseado em empenho, em entrega, em busca de igualdade. Passaram-se anos e experiências foram acumuladas. Eu perdia tempo, mas depois obtinha resultado. Foi bom. Agora quero tocar o barco. O próximo resultado está à frente.”
noticia por : UOL